[Paulicéia 073] Adriana Barbosa: "A população negra no Brasil empreende desde o processo da abolição"
A empreendedora social comenta os vinte anos da Feira Preta e anuncia edição 2022 do evento no Memorial da América Latina
Poucas pessoas levam tão a sério seu empreendedorismo (e colhem tantos frutos) quanto a criadora da Feira Preta, Adriana Barbosa. Aos 44 anos, vinte dedicados ao evento, ela coleciona merecidos títulos e homenagens, como figurar na lista de pessoas negras mais influentes do mundo. Mas isso é pouco perto do impacto da Feira Preta, que começou como um brechó criado num momento de aperto e hoje é o maior evento de cultura negra da América Latina, capaz de encher um espaço como o Anhembi com estandes de roupas, shows, debates e restaurantes. Em 2021, ao comemorar duas décadas durante a pandemia, a saída foi criar um evento online que acabou impulsionando ainda mais o poder de Adriana: a versão digital da Feira Preta teve mais de 60 milhões de visualizações e rendeu parcerias com C&A, Meta e Mercado Livre, entre outros gigantes. No papo abaixo, Adriana conta sobre perrengues e aprendizados e adianta as datas e o local da edição 2022: entre os dias 18 e 20 de novembro, no Memorial da América Latina.
Origens
Venho de uma família de mulheres negras. Fui educada por bisavó, avó e mãe. E tive minha filha, então são cinco gerações de mulheres. Essa questão feminina está muito presente na minha vida. Eu empreendo desde cedo porque venho de uma família de mulheres negras que trabalhavam como empregadas domésticas e complementavam a renda fazendo comida para vender. O empreendedorismo entra na minha vida com essa percepção da sobrevivência. Trabalhei em emissora de rádio e depois numa gravadora musical, a Trama. Quando eu saí da Trama, desempregada, não consegui me inserir no mercado de trabalho formal e comecei a fazer e vender roupas e bijuterias em botecos de samba, roupas na rua, bem estilo camelô.
Foi nesse momento que entendi que aquilo que a minha vó fazia era empreendedorismo na prática. Mas só vim a entender mesmo o significado da palavra quando me inscrevi em um programa de aceleração para empreendedores da ONG Artemísia, há mais de 12 anos, quando estava entrando no Brasil o conceito do empreendedorismo social.
Foi essa prática de me virar, de necessidade de vender minhas coisas, que me fez realizar a Feira Preta, de pensar "e se a gente pudesse fazer uma feira que trouxesse para o centro o potencial criativo e inventivo de pessoas como nós?”
Feira Preta, 20 anos
Em 2021, fizemos um evento gigante com 20 dias seguidos, com produção de conteúdo, em parceria com o Facebook. Batemos 65 milhões de views. Foi uma mega produção pra gente conseguir trazer um panorama do que tratamos nesses 20 anos.
Tivemos desde atividades do universo infantil, com os personagens negros da Turma da Mônica, até conversa com especialistas da área da saúde, passando por empreendedorismo, tecnologia e audiovisual. Tivemos um processo de colab com a C&A, levando os empreendedores da nossa plataforma AfroLab, um programa de educação empreendedora, em que fizemos uma turma específica de moda. Foi uma jornada de alguns meses desenvolvendo produtos que levamos para comercialização em uma plataforma própria, que a gente construiu. Também fizemos parcerias de market place com as Casas Bahia, temos uma loja oficial da Feira Preta dentro do Mercado Livre.
O AfroLab olha para incubação, aceleração, educação empreendedora e acesso a crédito. Nós atuamos nos temas da criação, produção, distribuição e consumo de empreendedores negros a partir de uma metodologia própria, criada em parceria com o Conselho Britânico, que leva em consideração os conhecimentos da diáspora africana.
A população negra no Brasil empreende desde o processo da abolição, são 135 anos de empreendedorismo. Tem saberes peculiares, a forma de empreender é muito peculiar. Criamos um programa para dar visibilidade e porque a gente começou a perceber que os produtos dos empreendedores eram muito parecidos, sabe? E o continente africano são mais de 50 países, não existe uma única referência estética, você tem que ampliar o repertório. Não é só animal print, os tecidos capulanas super coloridos. A gente começou a trazer designers, artistas, pesquisadores para fazer essa ampliação de repertório para os empreendedores de moda. E na área da gastronomia foi a mesma coisa: trouxemos pesquisadores, chefs. Por exemplo, teve uma turma que a gente levou no Mocotó, na Baianeira, para que eles pudessem ter um aumento de repertório para criarem seus cardápios baseados na identidade preta.
A Xongani, por exemplo, começou vendendo brincos com tecidos encapados com capulana, ia para Moçambique comprar tecido, hoje você vai no ateliê dela e vê muita amplitude de repertório. A Comedoria Baobá traz a ancestralidade da gastronomia africana para os pratos. São muitos empreendedores que a gente ajudou a construir identidade.
O Brasil é negro. E é negro pelo processo de autodeclaração — mais de 50%. É a segunda maior população negra do mundo, e só aconteceu isso por conta do processo de identificação, de eu me reconhecer negra.
O IBGE bate na minha porta e pergunta como eu me declaro: eu me declaro negra, e à medida em que me declaro negra, começo a reivindicar meus direitos, inclusive do ponto de vista do consumo. Eu quero uma maquiagem pra minha pele, eu quero produtos pro meu cabelo, não tolero mais comunicação que fala "produtos para cabelos rebeldes". Eu começo a ter uma consciência política e um consumo crítico em relação a minha identidade, e as multinacionais, sobretudo as grandes empresas, começam a perceber esse movimento: bom, se o Brasil é negro e consome, é preciso produzir para essa população. Aí quando elas percebem que não têm pessoas pretas dentro do ambiente corporativo, começam os programas de diversidade. Mas esse é um processo recente e em construção.
Na pandemia
A gente surgiu nos anos 2000, e os anos 2000 ainda eram analógicos, né? A referência digital que a gente tinha era o Orkut. Não tínhamos passado pelo processo da digitalização. Quando a pandemia chegou, a primeira barreira que a gente teve que lidar foi a questão do distanciamento social e de tudo estar dentro da internet. Precisávamos ter um pensamento mais digital e a gente não tinha, éramos analógicos, presencial. E aí a gente fez um processo de educação mesmo, de letramento digital da equipe que trabalha na Feira Preta, pra feira se tornar online.
A outra coisa foi que no finalzinho de 2019 eu aluguei um espaço para ser um coworking. A Feira teve um primeiro coworking quando esse conceito surgiu no Brasil, em 2011, mas tivemos que fechar por conta de grana. Eu fiquei com esse desejo de construir um escritório compartilhado e aluguei um espaço de 500 metros quadrados no Anhangabaú. E quando veio a pandemia e o distanciamento social, não dava para as pessoas trabalharem nos espaços e tivemos que remodelar e transformar em outra coisa, um espaço de produção de conteúdo.
Hoje nós temos duas casas com estúdio de fotos, vídeo, podcast. Todos os espaços foram criados numa perspectiva da economia colaborativa, com uma infraestrutura que os empreendedores podem utilizar, mas inseridos dentro do contexto digital. Por exemplo, a cozinha é toda instagramável para que eles possam produzir conteúdos ali, entendeu? A loja colaborativa é a mesma coisa. Criamos uma infraestrutura para que os empreendedores pudessem passar pela transformação digital.
A segunda Casa Preta está em Cachoeira, na Bahia, porque a história da cultura negra, o que a gente tem de identidade negra, vem dessa cidade, a partir da Irmandade da Boa Morte. Lá é a raiz, a tradição, a ancestralidade, o centro da diáspora.
A partir da Casa, estamos trabalhando uma perspectiva de desenvolvimento territorial, com cultura, com turismo. Lá nós fazemos residências artísticas e tem a lógica da economia criativa, economia circular e economia da colaboração. É uma infraestrutura da qual os artistas e os empreendedores usufruem.
Vitoriosa
Foi um processo de 20 anos, né? A gente não surgiu com essas marcas enormes. Pelo contrário, no começo elas nem queriam se associar com a Feira Preta, tinham preconceito mesmo. A gente surgiu muito independente, muito na guerrilha, a gente não conseguia espaço, era muito difícil sabe?
Mas com o tempo, à medida em que fomos ampliando e nos provando, e o contexto da questão racial no Brasil foi também tendo mais amplitude, fomos estabelecendo diálogos e pontes com essas marcas. Hoje, elas não só colocam o nome ou aportam recursos financeiros, elas ajudam na construção. E meu convite sempre foi esse, de fazer uma governança compartilhada.
2022
O plano para esse ano é realizar essa feira presencial, pra gente ter esse gosto de celebrar fisicamente com as pessoas. A Feira Preta 2022 acontece nos dias 18, 19 e 20 de novembro no Memorial da América Latina, que foi o espaço que quis nos acolher, que abriu os braços pra gente. Nesses 20 anos tivemos muita dificuldade de fazer feira nos espaços, mesmo pagando, e o Memorial foi o primeiro que falou: nós queremos vocês.
E faz todo sentido também porque tem essa coisa da latinidade, né? A nossa perspectiva de trabalho é América Latina. Esse ano temos uma parceria com a Colômbia, teremos artistas e empreendedores de lá, estamos no Festival Petrônio, em Cali, já fizemos trabalhos na Bolívia, a gente tem uma perspectiva afrolatina. O contrário também acontece! Nós levamos a nossa tecnologia do Afrolab para empreendedoras mulheres negras da Colômbia em parceria com o Mercado Livre, e vamos ter uma segunda edição esse ano. Eu fui para o festival lá, para conhecer, e esse ano a gente vai de novo com empreendedores e artistas. E a mesma coisa acontece deles para cá, trazendo empreendedores e artistas.
Esse ano, como em outros, temos shows, a praça de gastronomia, o espaço infantil, os talks. E vai ter um espaço de tendências, de black trends.
Vai ser um espaço onde a gente quer lançar o que a população negra tem produzido e que vai virar tendência: cabelo, roupa, maquiagem, comida, artes, tecnologias, games.
Tudo relacionado a tendência, para ser apresentado para o mercado. A gente sempre produz pesquisas, mas dessa vez não queremos só pesquisa, a gente quer trazer um relatório de tendências mesmo.
Apenas para apoiadores 👉 No próximo Guia Paulicéia: 11 coisas para fazer em São Paulo em maio.