[Paulicéia] Chico Felitti: "São Paulo é o estrobo de uma cidade"
O escritor fala sobre "Rainhas da Noite", livro em que registra travestis importantes da história de São Paulo
Apesar de não estar totalmente à vontade no rótulo 'escritor', Chico Felitti é escritor, sim. E dos bons. Como repórter, tem se dedicado a investigar e revelar a vida de personalidades extraordinárias, às vezes muito famosas e pouco conhecidas – como Elke Maravilha, cuja biografia saiu em audiobook e em livro. Antes de Elke, Chico já havia se dedicado a esse tipo de narrativa biográfica urbana ao registrar a vida de Ricardo Correa da Silva, personagem das ruas de São Paulo conhecido até então como "Fofão da Paulista", uma história que fez enorme sucesso na internet em 2017 e se tornou o livro "Ricardo e Vânia", publicado em 2019. O mais recente objeto de estudo de Chico são figuras importantes e ignoradas da história de São Paulo: as travestis que dominaram o Centro da cidade nos anos 1970 e 80, Andréia de Mayo, Jacqueline Blablablá e Cris Negão. No papo abaixo, Chico conta porque as escolheu, quais foram os obstáculos ao investigar suas histórias e qual a importância de registrar essas narrativas. "Rainhas da Noite" saiu em 2021 como audiobook na Storytel com nove horas de duração.
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Em São Paulo
"Eu nasci na Avenida Paulista, na maternidade Santa Catarina. Quando ainda era bebê, minha família mudou pra Angola, para uma cidade perto de Luanda. E ainda criança voltei pro Brasil. Fomos morar em Jundiaí. O interior de São Paulo em 1990 era muito diferente do de hoje, não tinha McDonald’s, e eu não vinha para a capital o tempo todo. Jundiaí é muito perto de São Paulo, meia hora de carro, mas cresci como alguém que estava longe."
"São Paulo tem muita coisa sempre, é uma cidade que pisca, o estrobo de uma cidade. E o que captura a minha atenção é sempre o estímulo. É uma cidade que está convulsionando o tempo inteiro assim, muito inquieta."
"Voltei para São Paulo com 17 anos para fazer faculdade. Fiquei oito anos fazendo ciências sociais na USP, mas me formei em jornalismo na PUC. Eu vim porque queria trabalhar, não porque queria fazer faculdade. Não entendia muito o rolê da faculdade, fui fazer para ter paz de espírito. Sou filho de uma família de classe média que ascendeu um pouco, tudo que meus pais têm, eles conquistaram, e eles tinham essa expectativa de que eu fizesse faculdade. Eu morava em república, comecei a trabalhar com 17 anos. Meu primeiro estágio pra valer foi numa assessoria de moda que na época atendia a Naomi Campbell, o Alexandre Herchcovitch. Era incrível, eu gostava muito de moda, quis fazer jornalismo de moda por um bom tempo, amava a Erika Palomino, foi minha criação. Isso foi mais ou menos em 2004."
Morar no Centro
"Fiz o roteiro dos prédios de arquitetos de São Paulo. Conheci meu marido no Copan, depois mudamos juntos para o Viadutos e depois para o Planalto, os dois do Artacho Jurado. Talvez eu me sinta mais seguro em prédio grande, esses prédios-cidade. Morar no Centro foi uma decisão e foi uma grande coisa, porque no tempo de faculdade era normal morar em republica, meio na zona oeste por causa da USP e da PUC, era o que estava disponível, todo mundo que eu conhecia morava assim. E daí, de repente, quando eu tinha uns 21, 22 anos, estava contratado na Folha com um salário fixo de três mil reais, que na época era muito dinheiro. Pagava 600 reais no meu aluguel no Copan, um quinto do salário, então sobrava dinheiro. Fui morar no Copan justamente por isso, porque tinha grana para morar sozinho e podia ir a pé."
"Bem quando eu cheguei em São Paulo, fui beber na Augusta e vi o Ricardo pela primeira vez, na rua. Perguntei para as pessoas quem ele era e cada um falou uma coisa. As pessoas só sabiam do apelido, chamavam de Fofão da Augusta. Cada um tinha uma versão assim: ‘ah não, é uma travesti, é um assassino, tem uma doença, é um experimento estético’. E eu pensei, gente, mas ninguém parou para perguntar? Depois fiquei sabendo que as pessoas até tentavam conversar com ele. Quando saiu o perfil do Ricardo, em 2017, muita gente veio me procurar e dizer que tentou, mas que ele era uma figura fugidia, muito difícil de entrevistar. Eu fiquei acalentando esse desejo, essa fantasia de entrevistá-lo por muito muito tempo. Só fui entrevistá-lo 13 anos depois de tê-lo visto pela primeira vez."
Ricardo
"O Ricardo me interessou justamente por ser esse enigma. Tudo que eu faço vem da minha curiosidade. E eu tinha muita curiosidade de perguntar se ele se sentia bonito assim, partindo do pressuposto de que ele tinha feito aquilo consigo mesmo, que era a coisa que eu mais ouvia: que ele tinha injetado silicone no próprio rosto. Eu acho que era um experimento estético extremo. Fui aprendendo e mergulhando nesse universo, vendo que tinha muita travesti que fazia coisa parecida. No caso do Ricardo, acho que por causa da esquizofrenia, tomou outra proporção, mas é uma harmonização facial, né? É a harmonização facial ao cubo, assim. Isso eram as travestis da década de 80. O que os sertanejos estão fazendo hoje com a cara, é o que as travestis faziam na década de 80. É a mesma coisa, deixou de ser marginal e virou mainstream."
"Eu passei seis meses entre escrever, editar e vender. Quando estava quase pronto, fui conversar com o BuzzFeed e com a Folha para ver onde dava para a reportagem sair. Esse foi o primeiro trabalho que fiz completamente para mim, descompromissado, sem chefe me dizendo o que fazer, sem diretriz, tamanho, prazo. Conversei meio ao mesmo tempo com o Buzzfeed, a Folha e a piauí. O Graciliano Rocha, na época editor do BuzzFeed News, topou. E topou com muita liberdade. Falei: qual o tamanho? E ele: o que você acha que a pauta merece. Eu não achava que teria tanta repercussão. Achava que seria mais localizado, uma coisa para quem viveu o centro de São Paulo."
Vânia
"Eu que não tinha mais nada para fazer. A história oral nunca vai ser a biografia do Assis Chateaubriand, que tem uma vasta coleção de documentos. Você faz o seu melhor, mas vai ter uns buracos. E eu achava que estava satisfatório assim. Mas daí conheci a Vânia, que era uma falha na história do Ricardo, essa pessoa que foi companheira dele por anos e desapareceu. Ela apareceu, a gente começou a se aproximar e conversar, meio por curiosidade mesmo. E falando com ela descobri que a Vânia tinha de fato injetado silicone no rosto do Ricardo, e o Ricardo nela. Ela foi para França, transicionou, mudou de nome várias vezes. São duas pessoas que compartilharam uma vida, compartilharam um rosto, só que cada uma pegou um rumo completamente diferente da outra. Daí eu falei com a Todavia [editora que publicou o livro em 2019] e propus um livro chamado 'Ricardo e Vânia', com a história de vida dos dois. E eles toparam. Daí fui para Paris encontrar a Vânia, mas o processo todo demorou. Levou mais de seis meses após o perfil publicado no Buzzfeed para eu pensar em fazer alguma coisa a respeito, porque para mim já tinha acabado. O Ricardo morreu e eu não queria mais falar disso, porque é muito perigoso resvalar na exploração."
Rainhas da noite
"Eu saia muito no Centro, tive muito contato com Kaká di Polly, essas pessoas que eu admiro muito, que são as Wikipedias da noite paulistana, uma comunidade mesmo. Eu ouvia uns nomes que eram pérolas, como Jacqueline Blábláblá, até que uma hora sentei com a Kaká e com a Biá e elas contaram que foi uma mafiosa pesadona, babadeira, que tinha um bordel na frente da igreja da Consolação, que frequentavam os empresários, os atores, jogadores de futebol, mas era só de travesti. Foi o primeiro ponto famoso de prostituição de travesti e de mulher trans em São Paulo. E ela ganhou fortunas porque ela foi a primeira oferecer. Ela parecia a Tieta, era um personagem meio incrível, e não tinha nenhum registro. Você joga no Google e tem uma reportagem da Trip que cita a Jacqueline, mas de resto era uma pessoa que não existia nos autos. Fiquei muito com isso na cabeça, aí veio a pandemia e eu falei, quer saber, eu vou começar a falar com as pessoas que viveram isso, com as antigas mesmo, com as drags e travestis e mulheres trans com 70, 80 anos para elas me contarem como foi esse período. E foi incrível. Foi quando me dei conta de que era uma história de máfia, não só da figura da Jacqueline, mas da Cris Negão e da Andrea de Mayo, as três soberanas, cada uma com um reinado diferente, uma jurisdição diferente. Todas morreram de forma violenta, não receberam mais que uma página de inquérito da polícia, nenhuma teve a morte julgada. Jacqueline morreu com tiro na Praça Roosevelt, dentro do carro, a Andrea morreu na mão de um cirurgião plástico que já foi condenado várias vezes por imperícia e por más práticas, tentando tirar o silicone do quadril, e a Cris morreu na frente da L'Amour, com dois tiros na cabeça."
"São histórias não contadas, não só da violência, mas também do esplendor delas. Andrea de Mayo andava de limusine, tinha 12 apartamentos em São Paulo. A Jacqueline tomava banho de champanhe e trocava de carro todo ano. Elas eram riquíssimas e ajudaram muita gente, atrapalharam muita gente. São figuras complexas, como todo chefe de crime, tem muita gente que amava e muita gente que detestava, elas faziam muito bem e faziam muito mal."
"O 'Rainhas da Noite' é 100% paulistano. É uma loucura no centro da maior cidade da América do Sul, uma coisa completamente inesperada e nunca documentada. Por exemplo, tinha congestionamento de carro conversível às quatro da manhã na Amaral Gurgel, porque as europeias, que eram as travestis que iam se prostituir na Europa, compravam carro conversível em dinheiro e iam para Prohibidu's, a boate da Andrea de Mayo. Então às quatro da manhã você via cena de filas de vinte conversíveis na frente da Prohibidu's, dirigidos por travestis, carros de milhares de dólares. Os registros são todos orais. A Cláudia me manda e descreve uma cena, a Kaká descreve outra, daí a Margot Minnelli, que hoje em dia mora em Roma num apartamento enorme, conta a história de como ela e a Cláudia Wonder brigaram porque as duas imitavam a Liza Minnelli. São histórias sensacionais e é história oral, porque tem pouquíssimo registro, não saiu no jornal, não tem historiografia, não tem nem B.O. registrado. É incrível quão poucos crimes essas três protagonistas foram de fato acusadas, tem alguns, mas perto das histórias e do que elas contavam, nem a polícia se envolvia com elas."
"As personagens se sentiram muito dispostas a contar suas histórias. É inacreditável a boa vontade, a generosidade, a abertura que eu encontrei. Nunca fiz um trabalho onde era tão acessível falar com a fonte. Gente que quer ser ouvida, que gosta de trocar ideias. Falei mais com a Kaká di Polly do que com a minha mãe em 2020. Tem a Ditinha, que é uma travesti que foi musa do Caetano Veloso quando ele voltou do exílio, ele encontrou ela, ela morava no Teatro das Nações, ela era zeladora, e ele botou ela no palco e ela dançava o fechamento do show com ele. Ela disse que fazia 40 anos que não dava entrevista. Então é meio uma fome de ser ouvida, de compartilhar, porque o apagamento é real."
"Elas foram pessoas que contrariam a história que o mundo queria delas. Isso é muito importante como repertório. Eu gosto muito de discutir por que a gente conta algumas histórias e não conta outras. Para mim, o 'Rainhas da Noite' é isso. As pessoas que viveram essa história não têm acesso à estrutura da indústria cultural, ninguém sabe como escrever um livro, como chegar numa editora. E os mantenedores de portões, os curadores de cultura não se interessariam por uma história dessas até muito recentemente. Os editores são todos homens héteros brancos que estudaram no Santa Cruz e fizeram USP, e achariam essa história indigna de ser contada."
O que mudou no mercado editorial?
"A diversidade. Ter gente chegando em posição de poder. Não é coincidência que a pessoa que comprou o ‘Rainhas da noite’ seja uma mulher vinda da periferia do Rio de Janeiro de uma família pobre. E não é coincidência que eu seja uma bicha vinda do interior de uma família classe média que precisava trabalhar para pagar as contas. E daí não vai ser coincidência as decisões que uma pessoa T numa posição de poder vai tomar, as decisões que uma pessoa que veio de uma comunidade vai tomar. Você traz a vida que você levou para as suas decisões."
"De repente o mercado falou: meu Deus, histórias de pessoas não-brancas vendem muito, o que está acontecendo? As últimas Flips, meu Deus, histórias de ativistas negros vendem, vamos todos tentar correr atrás de prejuízo! Por quê? Porque editores e editoras negros chegaram nessa posição de poder e falaram: nós vamos publicar isso porque a gente acredita na importância. E daí o mercado vai inteiro atrás e é a nova moda. Mas não pode ser só uma moda, uma tendência. É uma mudança, uma ruptura."
📚 Onde encontrar o Chico Felitti 🎙
“Ricardo & Vânia” (Todavia, 2019)
“A Casa” (Todavia, 2020)
“Elke: Mulher Maravilha” (Todavia, 2021)
“Além do Meme” (Spotify)
“Isso Está Acontecendo” (Globo)
“Elke: Mulher Maravilha” (Storytel)
“Rainhas da Noite” (Storytel)
Videoaula: Escrita de roteiro de não ficção para podcast narrativo (Domestika)
Site oficial: chicofelitti.com
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