[Paulicéia 052] Cancelar ou adiar festas: como, quando e por quê?
Reabertura paulistana é interrompida pela realidade da variante ômicron. DJs e produtores de eventos de São Paulo falam sobre até onde ir nesse começo de ano
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Já vivemos isso antes: um momento em que parece que ficou "tudo bem", que estamos seguros e que, apesar do descalabro do noticiário de todos os dias, a pandemia ficou pra trás. Quem aproveitou, aproveitou, porque 2022 trouxe na marra a realidade de que a pandemia continua.
A situação, claro, é bem diferente de 2020. A vacinação em massa baixou a fatalidade dos casos, ainda que o risco de transmissão seja maior com as novas variantes e que a covid (e agora também a influenza) continue sendo uma preocupação real para idosos, pessoas com comorbidades e crianças – que devem ser vacinadas em breve, apesar dos esforços contrários do governo federal e da falta de dados sobre o avanço da pandemia no país. Além do mais, temos hoje uma compreensão muito mais clara de como se dá a transmissão, e se por um lado não precisamos mais lavar embalagem de miojo com água sanitária, por outro sabemos que as máscaras serão parte da rotina por muito tempo. Também sabemos que aglomerações continuam não sendo seguras: a explosão de casos de gripe nesse começo de ano são consequência direta do período de "descanso" desse final de ano, que em São Paulo viu ensaios de blocos de Carnaval, bares lotados, shows, festas e confraternizações. Além, claro, do êxodo paulistano rumo ao litoral de todo o país, com aeroportos e voos lotados.
Quem ficou na cidade viveu uma São Paulo vazia, com quarteirões inteiros de luzes apagadas na semana de recesso entre o Natal de 2021 e o primeiro dia útil de 2022. Junto com isso, notícias diárias de conhecidos contaminados, dificuldade de encontrar testagem e hospitais públicos e particulares lotados. Soa familiar?
O "fervo" de São Paulo vive hoje, começo de janeiro de 2022, um momento peculiar. Mesmo escrever essa edição foi difícil: quando planejei, no fim de 2021, era para ser um apanhado de boas festas programadas para acontecer na cidade no começo do ano. Quando comecei, na primeira semana de janeiro, a ideia era falar com alguns produtores de festas sobre fazer-ou-não-fazer eventos. Agora, na hora de publicar, a pauta é o adiamento e cancelamento de eventos e os cuidados tomados por quem tem decidido, por um motivo ou outro, seguir com os eventos presenciais.
No papo abaixo, o médico e comunicador Uno Vulpo e os DJs e produtores de evento Camilo Rocha, Flavia Durante, Rafael Takano e Guarizo falam sobre as restrições e expectativas desse momento.
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Reabertura: foi bom enquanto durou
Para Uno Vulpo, médico e comunicador que fala sobre educação sexual e redução de danos nas redes sociais e no podcast Senta, esse relaxamento é normal e esperado. "Estamos todos vacinados com duas ou três doses, é natural que os cuidados afrouxem, até porque entre pessoas vacinadas e assintomáticas as taxas de transmissão diminuem e estávamos de fato com uma redução grande no número de casos", explica. Para completar, há também o fato de que hoje entendemos melhor como o contágio se dá, podendo colocar o foco no que funciona, como uso de máscaras, vacinação, isolamento e testagem. Mas o momento, lembra Uno, não é de continuar relaxando. "As pessoas estão se reinfectando e o vírus está com cada vez mais variantes. Isso somado a um governo negacionista, que dá alicerce para pessoas que desejam continuar sem se vacinar, faz com que o vírus exista num ambiente ótimo para se replicar e continuar infectando pessoas. Outro complicador é a vacina que não cura, só evita que você complique, e torna a infecção menos letal. O problema é que existem populações vulneráveis."
O experiente DJ e jornalista Camilo Rocha, figura central da cena de música eletrônica no Brasil desde os anos 1990, ecoa a mesma preocupação. "Foi uma sensação muito boa enquanto durou. A ideia de que poderíamos voltar a dançar e ouvir música coletivamente, atividades que a pandemia nos negou por tanto tempo, foi muito empolgante, foi um sentimento positivo, legal de ter vivido. Mas a realidade que se impõe com a disseminação da variante ômicron é de recuo nos eventos e encontros. Organizadores já estão cancelando e adiando atrações por toda parte, enquanto outros seguem com seus calendários, debaixo de cada vez mais questionamentos."
Agora, não
E os cancelamentos e adiamentos de festas e eventos já se impõem. A comemoração de aniversário "de 10 e 11 anos" da Capslock, que aconteceria esse fim-de-semana em local aberto em São Paulo, passou para fins de março, assim como toda a programação do Mundo Pensante, no Bixiga, as apresentações de Lulu Santos país afora e até o tradicional Festival de Pastel do Memorial da América Latina decidiu que não é hora de voltar.
A jornalista, DJ e produtora de eventos Flávia Durante, que em dezembro realizou a primeira edição presencial de seu bem-sucedido bazar Pop Plus em dois anos, desmarcou seu Baile do Bowie, que deveria acontecer no recém-reaberto Cine Jóia — a uma decisão foi conjunta dela com a casa de shows. "A volta do Pop Plus foi bem tranquila, com exigência de comprovante de vacinação de colaboradores, expositores e público, além da obrigatoriedade de uso máscaras. Tivemos uma circulação de oito mil pessoas ao longo do dia, que parece um número grande mas é bem menos do que as doze mil pessoas que tínhamos em outras edições. O que mudou de lá pra cá é que tivemos essas confraternizações de ano novo em que as pessoas relaxaram um tanto e pararam de seguir protocolos, daí o vírus volta a circular com mais facilidade."
Alguns DJs e produtores de festas, no entanto, estão apostando nos cuidados disponíveis para seguir em frente. É o caso do DJ Rafael Takano, o Telefone, entrevistado do Paulicéia em outubro, que até o fechamento desta edição mantém confirmada uma edição de sua festa Súbete no Susi in Transe em 22/01. "Minha impressão é que o vírus vai continuar por aí por alguns anos. Como acontece com a influenza, vamos continuar nos vacinando semestralmente, depois anualmente. As variantes vão continuar aparecendo, porém cada vez mais fracas e previsíveis. A própria ômicron teve alta taxa de contágio mas já se provou mais fraca, com menos hospitalizações ou hospitalizações mais brandas."
Para o DJ Guarizo, da festa Dedo no Cue e Gritaria, da Tokyo, o mês de janeiro "é crucial para entendermos se será possível ou não continuar com o presencial em fevereiro." Suas próximas gigs estão, até o momento, mantidas. Mas é um cenário que pode mudar, como já mudou no passado, com a vantagem de que agora temos maior capacidade de adaptação. "Se continuarmos nessa toada, e a exemplo de outros países, fecharemos em breve novamente. Mas dessa vez sabemos que será por pouco tempo, alguns meses. Estamos vacinados e mais resistentes do que há dois anos, e já sabemos o que fazer."
Otimismo responsável
Esse "já saber o que fazer" é essencial em outro aspecto da cena noturna, que apareceu muito nas discussões da Fervo Conference, conferência online com empresários, produtores, DJs e frequentadores da noite de São Paulo que aconteceu em outubro de 2021 e foi tema do Paulicéia de segunda feira. Para Camilo, a questão do "fervo" como comunidade ativa na cidade passa pela responsabilidade: "É importante destacar a importância das cenas enxergarem seu lugar na sociedade, por mais “underground” que se julguem. Ser respeitado, como agente cultural ou econômico, passa por aderir aos acordos que objetivam o bem-estar coletivo", pontua. E isso pode significar evitar eventos que podem juntar grande número de pessoas. "Sei bem o quão complicado isso pode ser, depois de tanto tempo parados e sem ajuda do poder público, mas vale lembrar de uma ideia defendida pelo produtor Guilherme Varella no debate sobre o Carnaval 2022, na Fervo, de que as festas são onde a vida é celebrada. Não faz sentido que a festa seja cúmplice do vírus e da doença. Se ela corre o risco de representar isso, é hora de recuar."
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Próximos passos
Ainda que ninguém possa saber com exatidão o que vai acontecer, principalmente levando em conta que esse é um ano extraordinariamente tenso, com campanha eleitoral à vista, é senso comum que o momento é de parar para olhar ao redor. É nesse clima que se dá o cancelamento do Carnaval de rua deste ano, por exemplo.
Uno concorda: "Acredito que não devemos retornar absolutamente e que o ideal é mantermos grandes eventos presenciais cancelados até o meio do ano ou até o ano que vem. Fazer um Carnaval nesse cenário, por exemplo, é loucura do ponto de vista epidemiológico — mesmo eu, como folião querendo demais que ele acontecesse. Estamos no escuro quanto à nossa situação, o governo não está investindo em testagens e não sabemos quantas pessoas estão com Covid, gripe, resfriado ou até mesmo com coinfecções de Covid e gripe. Objetivamente, acredito que não devemos voltar para atividades de eventos de grande porte até 2023".
A testagem , ou a falta dela, é um dos problemas mais graves nesse momento. Quem está em São Paulo hoje com sintomas ou risco de Covid pode encarar filas do Sistema Único de Saúde, que só testa quem tem sintomas graves, ou gastar entre R$80 e R$170 em testes particulares. "Em tudo isso, é de se lamentar as oportunidades que se perdeu de mapear por meio da testagem recorrente os caminhos do vírus e variantes no país, na cidade e nos eventos culturais", pontua Camilo. "Seria muito educativo e útil para futuras medidas. Mas o Brasil é um país que abdicou da testagem em massa e esse procedimento virou um luxo para quem pode pagar". Junto com o uso de máscaras e protocolos de isolamento, a testagem deveria estar sendo amplamente incentivada pelo poder público como forma de proteção, lembra Flávia: "Eu estava vendo a fala da pesquisadora Bia Klimeck, de que a gente precisa parar de falar em aglomeração e começar a falar em proteção. O que adianta estarmos em uma reunião de poucas pessoas, se todos estiverem relaxados, sem máscara, vai espalhar da mesma forma. O que precisa mudar no cenário de saúde é termos distribuição de máscaras boas e facilidade de testagem".
Enquanto isso
Enquanto o cenário não muda, a redução de danos é mais importante do que nunca. "Por agora, quem quer ferver deve escolher bastante o rolê, tentar ir no máximo em eventos pequenos em bares e boates pequenas", pontua Uno, que também lembra que, uma vez em festa, agora não é hora de beijar desconhecidos, dividir cigarros, baseados, canudos ou copos, e muito menos meter o dedo no MD alheio. "E se você voltou de viagem, mantenha o isolamento mesmo se estiver assintomático enquanto não estiver testado."
Apenas para assinantes: 11 mostras de arte que estão rolando em São Paulo em janeiro – lembrando que museus são ambientes de circulação controlada e que todos os eventos requerem comprovante de vacinação e uso de máscaras.