[Paulicéia 067] Lena Kilina: "Amo São Paulo, mas a falta de segurança e natureza é muito brutal"
A pesquisadora e artista audiovisual artista nascida na Sibéria fala sobre seu amor pelo Brasil e sobreviver em São Paulo durante a pandemia
Lena Kilina não é uma pessoa como as que você encontra todos os dias. Primeiro que para nós, brasileiros, sua nacionalidade carrega a ideia de exotismo: nascida no extremo leste da Rússia, ela é rápida em dizer que vem de longe, muito longe. Segundo, poucas vezes tive a chance de falar com alguém tão cosmopolita: Lena saiu da Rússia em 2008, morou em Xangai e em Barcelona, e desde 2016 faz viagens frequentes entre Europa, China e Brasil como parte de sua pesquisa acadêmica sobre espaços urbanos. Sua rotina de estudante-viajante foi interrompida com o começo da pandemia, há dois anos. Desde o fim de 2019, Lena está em São Paulo, onde registra e estuda, entre outras coisas, o Minhocão. O enorme viaduto que rasga o Centro da cidade é tema de sua tese de doutorado e foi cenário da nossa conversa, no começo de 2022 – antes, portanto, da invasão russa na Ucrânia, sobre o que ela fala no post abaixo:
"Eu nasci na Sibéria. Desde a infância, minha geração sabe o que é a guerra — não só através da história, de livros ou filmes, mas pelas histórias REAIS de nossos avós. Mesmo sem termos vivido na União Soviética, nós aprendemos sobre a Segunda Guerra Mundial e sobre a contribuição do povo russo na vitória sobre o fascismo. Quando pequena, eu já conhecia todas as canções sobre a guerra, sobre o sofrimento dos soldados russos PELA PAZ, o sofrimento das mulheres e dos idosos PELA PAZ. Nós carregamos esse trauma histórico desde o nascimento. Eu me lembro muito bem — se pelo menos não houvesse guerra.
Mas na manhã de 24 de fevereiro de 2022 meus amigos em Kiev, em Odessa, em Carcóvia foram acordados com explosões. O país onde eu nasci havia entrado em guerra contra a terra dos meus amigos. Para além da dor por aqueles que estão sendo e ainda serão feridos e mortos, e o horror pelo que essa guerra vai se tornar, eu não sinto nada. Estou paralisada.
Eu costumava trabalhar como jornalista durante o ensino médio. Lembro que todos os dias 9 de Maio, o Dia da Vitória, eu fazia entrevistas com veteranos que atravessaram a Segunda Guerra, e me sentia grata por tudo aquilo ter acabado, pelo menos na minha geração. Como foi que isso mudou em uma noite?
A violência começou, e agora também é parte da minha biografia. 🇺🇦🌹"
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Sibéria-Brasil via Xangai
"Sou da Rússia, da Sibéria. Minha cidade, Zabaykalsky, é muito longe daqui, fica na fronteira com a China e Mongólia. É o Extremo Oriente, a parte mais asiática da Rússia. Minha primeira formação foi na cultura da Ásia, com foco no idioma chinês. Estudei na Rússia, e em 2008 fui para a China, em Xangai. Lá comecei a fazer coisas mais acadêmicas e traduções, mas sempre fiz música e teatro, ainda que nunca tenha levado isso super a sério, não vou falar que sou artista, mas a música sempre esteve na minha vida. Eu comecei a fazer capoeira em 2010, em Xangai, com um professor italiano e mestres brasileiros. Quando comecei a pensar muito sério sobre o Brasil, a primeira coisa que eu queria saber era sobre a cultura, a Bahia, o Candomblé, a capoeira. Depois que cheguei ao Brasil já estive na Bahia muitas vezes, claro. Mas agora, com a pandemia, parei de viajar.”
"Depois eu fui pra Suécia, para fazer mestrado em antropologia e sociologia da China, e pensei: vou procurar um doutorado sobre o Brasil. Meus tópicos seriam Brasil e China. Sempre tive interesse em urbanismo, nas relações das pessoas com o espaço. Em 2014, ganhei uma bolsa na Unicamp para fazer doutorado. Comecei meu programa no final de 2015. São Paulo e Xangai têm muitos paralelos. São duas megalópoles, duas cidades internacionais, não só porque têm muitos estrangeiros, mas porque são muito influenciadas por várias culturas que não a local. Xangai é a cidade mais cosmopolita da China, um lugar que esteve sob domínio de franceses, russos, ingleses e alemães, então carrega ainda hoje todas essas misturas. Por exemplo, na China o tango é famoso. Mas isso não significa que os chineses têm muito interesse na Argentina. A capoeira é uma coisa mais extrema, muito nova, que começou de repente, com um círculo de estrangeiros em 2010. Eu lembro muito bem, porque ninguém fazia capoeira, e agora em 2022 a China tem quatro cidades com aulas de capoeira, as pessoas amam, querem aprender português, a cultura, a filosofia.”
Doutorado
“Em Xangai eu comecei a fazer fotografias, uma coisa mais artística dentro do que é possível numa pesquisa. A maioria das pessoas pesquisa sociologia, economia, a parte business da China, e alguma coisa cultural também, mas não arte. Então meu orientador, o Tom Dwyer, sociólogo com foco em aspectos diversos da China, gostou do meu tópico. Eu defendi ano passado e agora estou me preparando para publicar minha tese.”
“É sobre o Minhocão e um espaço urbano de Xangai que não existe mais. Se chama Red Town, uma zona de economia criativa, eu fotografei os últimos dias, antes de ser demolido – durante doze anos foi uma zona de arte e design. Para mim, é muito interessante comparar esses dois lugares pensando nas relações de pessoas e espaços: não sobre a arquitetura, mas sobre antropologia do espaço.”
“Depois de demolido, o lugar se tornou um shopping center. Business project, sempre. São Paulo também é assim, né? Mas a China tem um sentido mais cruel para mim, porque é mais rápido e você não pode discutir. Aqui ainda tem uma estrutura de protesto, lá ninguém protesta, é proibido, você não pode fazer nada, há muito controle social e político. Tudo é construído muito rápido e sem respeitar as opiniões das pessoas. O lucro, sempre. Já o Brasil é sempre mais lento, as pessoas têm uma opinião, vocês ainda têm uma democracia, ainda têm liberdade — só que, claro, cada vez menos.”
“Fiz duas exposições de fotografia com minhas imagens. Com o doutorado, comecei a misturar a questão da antropologia visual, a presença desses lugares na cidade, solidão, senso de pertencimento — os temas que gosto de descobrir na arte, tanto nas fotografias quanto nas performances que faço.”
NE: A Lena se apresenta HOJE, segunda-feira, no Centro da Terra, ingressos aqui
Minhocão
“Quando comecei a pesquisar o Minhocão, tive ajuda da Associação Parque Minhocão. Encontrei o (artista plástico paulistano) Paulo Von Poser, uma pessoa maravilhosa. Ele ficou super empolgado, falei que estava fazendo pesquisa sobre o Minhocão e que faltavam informações, e ele me apresentou donos de apartamentos que dão para o Minhocão, como o (artista e ativista pelo uso comum do Minhocão) Felipe Morozini. No momento estou vivendo em um desses apartamentos, coisa de um mês, uma vivência antropológica, porque você tem que estar no espaço de sua pesquisa para sentir o que ela é.”
O Minhocão é um caso muito complicado. Em 2019, o então Prefeito Bruno Covas definiu que é um parque, mas há vários grupos com várias opiniões sobre como esse espaço deve ser usado. Um grupo de urbanistas queria deixar só trânsito, a Associação Parque Minhocão falou ‘vamos fazer para as pessoas, mas sem demolir’. Tem muita luta envolvida.”
São Paulo na pandemia
“Até 2019 eu morava em vários lugares, mas sempre voltava pra China. Minha casa era mais Xangai. Daí cheguei em São Paulo em 2019, no final do ano, pensando que ia terminar o doutorado e continuar um pós-doc ou algo do tipo. Mas começou a pandemia e eu fiquei aqui.”
“Eu moro no Parque Dom Pedro II, uma área bem punk, em um edifício famoso, o Guarany, do Rino Levi. É um edifício de arquitetura histórica no Centro, com uma vista maravilhosa, porque vê toda a cidade, mas é uma área muito degradada, ainda pior que o Minhocão e a Santa Cecília. Fica escondido, mas é do lado da Catedral da Sé.”
“Lá na China a epidemia começou em novembro de 2019. Tenho amigos em Wuhan, postei no Instagram quase todos os dias as novidades que chegavam de lá. Lembro que, antes do Carnaval, a situação na Itália já estava muito ruim e começou a assustar. Quando a pandemia chegou, no final de março, fiquei muito em choque, eu estava com amigos e nos primeiros dias, quando as pessoas nem usavam máscaras, fiquei com muito pânico porque via o que estava acontecendo na China. Quando o médico em Wuhan morreu, ficou bem sério.”
“Eu fiquei presa em São Paulo. Não tinha um lugar para onde voltar, porque na Rússia não tenho nada certo e a China continua não permitindo a entrada de estrangeiros, só para coisas diplomáticas ou para quem tem negócios. Mas a maioria, não. E eu sempre tive visto de estudante, de pesquisadora. Meu plano agora é terminar isso que eu falo que é meu sonho no Brasil: o livro e mais projetos artísticos e antropológicos, fazer uma expedição para Amazônia, colaborar mais com minorias e comunidades marginalizadas que não tem grande voz no cidade. Eu amo São Paulo. Só tem duas coisas que eu não gosto: segurança, nunca posso relaxar aqui, e a falta da natureza, é muito brutal. Eu amo o Brasil, sempre quero trabalhar com o Brasil. Mas agora não é um bom momento para morar aqui.”
🖼️ Onde encontrar a Lena
“Urban Play”— São Paulo x Xanghai, com Alice Casiraghi
A tese de doutorado da Lena: From Portal do Urban Play: Contemporary China and Brazil
Documentário sobre o Minhocão, com o artista plástico Paulo Von Poser:
Uma performance artística da Lena sobre o Minhocão
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Lena ❤️❤️💙💛