[Paulicéia 072] Luiz Campiglia: "Saber que as pessoas querem que a gente continue nos deu uma força enorme"
O proprietário e chef do Paribar, tradicional ponto do Centro de São Paulo, fala sobre as muitas encarnações do local
Quem passa pelo toldo branco e verde na Praça Dom José Gaspar, entre a avenida São Luís e a Biblioteca Mário de Andrade, talvez não saiba, mas está passando por um lugar histórico da boemia paulistana. É o Paribar, Pastifício Ristorante e Bar, fundado por italianos em 1949, uma entidade imóvel de diferentes encarnações: foi point da Tarsila do Amaral e dos Andrade, mudou de dono, teve mesa cativa do Sérgio Milliet, inventou o provolone à milanesa, serviu filés inspirados em personagens da imprensa e muitas, muitas garrafas de uísque até fechar as portas, já decadente, em 1983. O atual dono, o chef Luiz Campiglia, registra alguns desses momentos em fotografias nas paredes e num certo clima de São Paulo Antiga, mas gosta de lembrar: esse não é um bar temático. O Paribar de hoje, nos anos de retomada da vida cultural do Centro da cidade, emprestou o local para festas como a Voodoohop e a Selvagem, foi palco de bailes de Carnaval e fez PFs populares durante a pandemia. Agora quer falar sério sobre memória — mas no prato, a partir das pesquisas sobre comida paulistana.
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70 anos de história
"Eu abri essa porta em 2005 para fazer uma cafeteria. No meio da obra, do nada, apareceu um cozinheiro e perguntou o que eu ia fazer. Eu ainda não cozinhava. Falei da cafeteria e ele disse pra esquecer, que não ia dar dinheiro. E começou a contar que cozinhava com o Sergio Arno, começou a falar que era pra colocar umas massas ali — e eu falei, tá, vamos fazer. O cara que estava fazendo o projeto só não largou na hora porque a gente tinha uma relação de amizade. Mas falou que eu era completamente louco. E aí foi um sucesso, chamava Santa Fé. Colocamos umas mesas na calçada e isso chamou a atenção das pessoas que passavam. Todo dia alguém falava: pô, isso aqui foi o Paribar!
"Quando aluguei o espaço, não sabia que aqui tinha sido o Paribar. Era uma porta fechada com placa de aluga-se. Mas depois comecei a ligar minha antena para tudo que escutava, tentando entender como foi o Paribar através dos relatos. E decidi reabrir. Mas foi um processo longo, comecei a cozinhar, fui estudar. As pessoas da cozinha falavam: você tem um negócio, um paladar, tem um olhar, por que você não põe uma roupa branca e vem aqui com a gente? E aí foi indo! Terminei os estudos, saiu o registro de nome, fechei o Santa Fé, desenhei o operacional, traduzi o que tinha escutado. Eu já tinha estado no lugar sem ter estado, de tanto escutar o que os frequentadores que ainda eram vivos em 2006, 2007, falavam. Eram frequentadores antigos, já bem velhinhos, que pegaram as épocas áureas do Paribar.
"Não tentei copiar o passado, então isso criou uma relação de respeito entre a gente. Não é um bar temático. Meu intuito foi, e ainda é, reproduzir a essência do lugar. Têm elementos que me chamaram mais atenção, mas tem elementos meus, tem a minha história aqui também.
"O toldo verde e branco, o neon, essa luminária é parecida com a que eu peguei nas fotos. Eu tinha as cadeiras de vime na varanda, mas tirei, ainda quero voltar com elas, que era uma coisa clássica. Já as pinturas, os quadrinhos, a prateleira de vidro, os sofás verdes, esse tom amarelado, isso é coisa minha.
"O Paribar reabriu em 2010, depois que me formei. Saiu o NPI, consegui juntar uma grana e reformei o restaurante inteiro. As fotos amareladas na parede, a família que inaugurou o Paribar me trouxe, a neta daquelas pessoas que estão ali, já falecida. Ela falou: muito obrigada por reabrir, isso foi muito importante para a nossa família. Contou algumas coisas, como tinha acontecido, como passou para a mão de Franco, e foi uma conversa bem agradável, era uma senhora elegantérrima. Outras fotos são do Acervo do Estado, que eu peguei antes de abrir o bar. Tem fotos dos acervos da Folha, ganhei do Finotti (Ivan Finotti, repórter da Ilustrada). Inclusive aquela foto ali do Franco foi uma reportagem que a Folha fez quando fechou o Paribar, em 1983. A legenda é: Eu não sou o culpado pelo fechamento do Paribar.
"A família que fundou era italiana, saíram de lá depois da guerra, vieram, abriram primeiro no imóvel aqui ao lado e aí cresceu para cá. Nas fotos, eles tinham vitrines, faziam bolos. A coisa da massa acabou ficando porque eu comecei a fazer as massas, e virou um xodó meu, comercialmente vai bem e já faz parte da minha história.
"Quando o Paribar abriu, ele tinha esse ar europeu, os italianos trouxeram mesa na calçada. E os modernistas rapidamente vieram aqui. A principal frequentadora era Tarsila, é a que mais se fala e tem registro. Os Andrade também, mas muito mais ela, amava o Paribar e vinha bastante, ela e o Di Cavalcanti. Era um lugar chique.
O Centro na pandemia
"Para a gente que está no Centro há tempos, é muito triste, a população de rua aumentou demais. Na gestão do Haddad pelo menos eles eram assistidos. O que a gente nota é que estão desassistidos. É muito triste. Em outras gestões da prefeitura existia uma assistência, as pessoas acompanhavam, tinha um olhar para quem está em situação de rua, coisa que a gente não vê agora. Eu converso com todos, todo dia de manhã tem gente aqui na minha porta, eu os conheço, a gente sabe pelo nome, eu os atendo, converso com eles. Na hora em que fechou tudo e ficou deserto, foi mais triste ainda.
"O Centro é um lugar que tem muita gente na rua. Eu não parei de trabalhar, ficamos fazendo um delivery local que chamei de PF do Trabalhador, uma marmita de R$15 com arroz, feijão e uma mistura (NE: o PF do Trabalhador segue no cardápio tanto em marmitex quanto no salão, veja no final da reportagem). Era uma imagem, assim, de pós-guerra, não tinha ninguém na rua. Só os trabalhadores, o pessoal da Enel, de telemarketing, da Sabesp, que estavam sempre por aí. E os moradores de rua.
"Depois fui seguindo os protocolos, reabre, fecha, reabre até as 17h, fecha de novo, reabre de novo. Mas quando reabriu foi incrível, fomos super bem recebidos, foi muito legal. As pessoas vieram e ficou gente nos ajudando. As pessoas querem que você continue, é muito importante, nos deu uma força enorme.
Comida paulista
"Pesquisar a história do Paribar também acabou sendo uma pesquisa sobre a cidade de São Paulo, e sobre comer e beber em São Paulo. Usei muito a (biblioteca) Mário de Andrade, aqui do lado, que facilitou muito. Eles tinham uma bibliotecária, infelizmente ela faleceu, que eu chegava lá falando que queria entender a comida lá de trás de São Paulo e ela já deixava separado para mim, coisas que não eram nem livros de gastronomia, às vezes era só um parágrafo falando sobre comida. Eu chegava e tava marcada a página. Isso ajudou muito. Outra coisa que ajudou foi o Andar 43 (espaço no Mirante do Vale sobre o qual falamos nessa edição do Paulicéia), que me fez colocar as pesquisas em prática, botar bagre no cardápio, mandioca cozida, lambari, pamonha salgada. Eu tinha várias receitas guardadas, li alguns dos livros e fiz alguns cursos do (sociólogo e pesquisador paulista) Carlos Alberto Dória, nunca parei de pesquisar – mesmo durante a pandemia, que foi uma coisa de precisar sobreviver, o que não deixa de ser uma coisa na nossa cidade. Estando no Centro, vivendo no Centro, o hábito do paulistano de comer sempre está ao meu redor.
“Teve períodos em que eu resgatei pratos do Paribar antigo. O cardápio original era daquelas coisas clássicas, né? Filé Chateaubriand, fígado à Veneziana, camarão empanado com salada de batata, fettuccine parisiense, essas coisas. Tomava-se Meia de Seda e muito uísque. O provolone à milanesa foi inventado no Paribar! Parece que um cliente de Santos, que vinha aqui semanalmente, chegou e falou: queria comer um queijo, mas eu não queria desse jeito, né? Conversou com o garçom e aquela coisa, peraí que eu vou me virar, foram lá e empanaram o provolone e ficou o provolone à milanesa. Eu tive no cardápio uma época, tirei e estou pensando em voltar com ele. Teve um período que eu fiz com o Filé Meninão também. Essa história é a seguinte: nos anos 1970 tinha um jornalista, cujo apelido era Meninão, que veio aqui e odiou. Botou na primeira página do jornal que o Paribar era horrível. E o Franco, que era o dono na época, ficou desesperado e decidiu inventar um prato pra esse cara. E inventou o Filé Meninão, que era o filé Chateaubriand, aquele filé alto, com molho madeira e um arroz à milanesa, aquele amarelo. Chamou o cara e serviu, o cara amou, falou bem e o prato virou um sucesso.
“Muito do que eu peguei nas pesquisas não são receitas, são ingredientes. Ficou muito na minha memória a questão dos Jesuítas e a fome que eles passaram, então eu fiquei com ingredientes na minha cabeça: o lambari, a banana, a mandioca, o milho, o cogumelo orelha-de-pau, que tá no cardápio. O bagre também é muito importante, porque ele está na maior parte das pesquisas, em diversas fases. Eu tô servindo, demora dois dias para ficar pronto – marino, cozinho no próprio caldo, sirvo com molho da carcaça defumada, purê de banana verde com farinha de jatobá e paçoca de carne seca.
“Eu queria usar mais miúdos. Quem sabe, às vezes, com o tempo, com mais trabalho, não crio um repertório de pessoas que vão entender e vão vir aqui comer isso. Gosto de taioba, mas acho difícil de achar. Parece que na feira de orgânicos da Água Branca tem. E a carne de paca, que é uma carne que se comia mas hoje é proibida. Antes daqui eu fundei uma ONG que fazia trabalho socioambiental no Vale do Ribeira, na Ilha do Cardoso, chamada Ariri. Fui muito em comunidades tradicionais e quilombolas, e eles caçam paca, é uma coisa ancestral. Ali tem muita mandioca, tem casa de farinha, essa experiência ajudou muito a imaginar aqui. Porque a cidade caminha e, como eu vi pelo Carlos Alberto Dória, a nossa questão não são os biomas, são momentos da cidade. Tem momento de muita mata, de passagem de Bandeirantes. O único que não me encanta muito é o ciclo do café, porque é uma coisa europeia. Quero ir mais lá para trás.
PF do Trabalhador
“Como que um bar quase centenário, no coração de São Paulo, não tem um PF, o prato mais paulistano de todos, para chamar de seu?” O PF do Trabalhador continua no cardápio tanto oara delivery, em marmitex (R$15) quando no salão (R$28,60) com picadinho, feijoada, galetinho, calabresa defumada, pernil, coxa ou sobrecoxa com arroz e feijão e mais duas guarnições.
🧂 Onde encontrar o Paribar
Praça Dom José Gaspar, 42 - República
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Demais. Foi do brunch pela ciclovia ‘as festas da Selvagem. Agora fase café/reunião. Centro merece essa história.