[Paulicéia 071] Mônica Novaes Esmanhotto: "É um lugar com muita paixão"
Gestora cultural da Casa do Povo fala sobre a história e atividades de arte e ativismo do tradicional espaço do Bom Retiro
Esse é um post mais longo que o normal. Você vai precisar abri-lo em uma janela extra para ler. Mas vale a pena, prometo. Vale por causa do assunto: a Casa do Povo é um dos espaços mais apaixonantes de São Paulo, um desses lugares em que você vai e fica prometendo voltar logo. Ainda bem que é perto: na Rua Três Rios, coração do Bom Retiro, bairro-símbolo da diversidade histórica paulistana, que a Casa tenta acompanhar. Aberta há setenta anos como um espaço de memória e resistência do povo judeu na cidade, hoje é lar de ações de arte e ativismo que vão de peças de teatro e instalações a aulas de boxe e laboratório de jornalismo. É impossível tentar explicar do que se trata a Casa do Povo em um email. Mas na entrevista abaixo, a Monica Novas Esmanhotto, busca nos guiar por essa história.
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Quem é
“Eu sou arquiteta de formação, mas hoje me considero gestora cultural. Me formei na Federal do Paraná e moro em São Paulo há 18 anos, vim para fazer mestrado em História da Arte na USP. Sempre trabalhei com Patrimônio Histórico, com restauro, e comecei a me interessar pelo mercado de arte por razões práticas. Na época em que fui morar sozinha foi o ano da primeira SP Arte, fiz um freela para as galerias que estavam participando. A feira ainda era muito pequenininha, ocupava só o térreo da Bienal, era uma novidade para todo mundo, era tudo muito fresco. Começou a nascer ali uma ideia de coletividade, de pessoas se virem trabalhando com o setor econômico. Galeria é uma coisa muito fechada, cada um cuidando do seu negócio, mas ali muitos galeristas perceberam um circuito cultural de representação de artistas e difusão de arte. Começou surgir uma ideia de mais colaborativismo e na sequência veio a ABACT - Associação Brasileira de Arte Contemporânea, que é uma entidade privada, onde fui trabalhar alguns anos mais tarde fazendo o gerenciamento de um projeto de internacionalização e branding chamado Latitudes, que existe até hoje. Foi um projeto que consagrou aquele sentimento de 2005, de consolidar esse grupo como setor da economia, a gente começou a fazer pesquisas de mercado, a levantar números para entender como esse setor se organiza, quem trabalha, o quanto se paga, se vende, se exporta. Trazíamos muitos convidados internacionais para fazer o circuito cultural aqui no Brasil, incluindo as feiras, as bienais, os museus, as instituições culturais, imersões mesmo, chamando diretores de museus, curadores que depois voltavam para seus países de origem e chamavam os artistas para projetos, convidaram exposições para viajar, ou adquiriram obras diretamente. Isso reverberou muito, gerou burburinho.”
Na época o Brasil era outra coisa, né? Abriram-se todas as portas. Eu convidav”a os gringos e eles se estapeavam querendo vir pro Brasil, muito soft power. Você faz isso apresentando o circuito para as pessoas que são os gatekeepers, que podem fazer essa roda girar.
“Foi bárbaro, pra mim foi uma escola, viajei o mundo inteiro, foi muito legal. E nessa época, como eu fazia essas imersões, organizava essas agendas de imersão cultural, sabia tudo que tava rolando. Então a Casa do Povo, que eu conhecia como uma instituição importante do nosso circuito paulistano, entra na minha vida. Nessa época, o Benjamin Seroussi, diretor geral e diretor artístico, estava imerso na reconstrução da Casa do Povo, e eu era a pessoa que eventualmente trazia projetos como produtora cultural. Até que um dia ele conseguiu uma verba para contratar alguém para uma consultoria em desenvolvimento institucional. Aí passei por uma seleção e em princípio fiquei para uma experiência de cinco meses. E cá estou, três anos e meio depois, fazendo alianças, construindo pontes, na maciota. E é um lugar que muita gente ama, tem muita paixão.”
A Casa do Povo
“A gente diz que a Casa tem espaços flexíveis e uma programação porosa, porque ela tem essa escuta e essa acolhida ao que vem de fora, não é fechada em si mesma. Se existe uma instituição, ou um indivíduo, ou um grupo ou um coletivo, que quer fazer um evento ou uma experiência e precisa de espaço, a gente recebe essa solicitação. A partir de alguns critérios, que passam pelo alinhamento com a nossa missão e com os nossos pilares, e também por uma disponibilidade dos espaços, acolhemos e entramos como parceiros.”
“A casa tem 70 anos, passou por décadas complicadíssimas. Nunca chegou a fechar, mas passou por períodos de esvaziamento econômico, por falta de governança, de programação. Aí o Benjamin chega em 2011 nessa casa meio em ruínas, não só no aspecto físico mas organizacional. E ele, como curador, fala: gente, se eu não conseguir reerguer uma casa com esse histórico, é melhor virar vendedor de croissant. Para encurtar, a estratégia que ele usou foi conhecer o histórico da casa, que já foi uma escola infantil, um teatro de vanguarda super importante, e que tem relações com a Comunidade Judaica, essa é a nossa raiz. Ele juntou as redes desse tecido que havia esgarçado, começou a trazer de volta pessoas formadoras de opinião, que estão em evidência em muitos círculos, e começou a criar uma programação diferente do que faziam os nossos vizinhos. A Pinacoteca faz exposição, o Sesc Bom Retiro tem espetáculos e convivência, tem o Teatro Porto Seguro, as Oficinas Culturais Oswald de Andrade fazem workshops. O que a Casa do Povo pode fazer para contribuir para um circuito, não repetindo aquilo que já existe? Ele começou a fazer uma programação inovadora, experimental, alinhada com a missão original da casa.”
A gente tem os primeiros manifestos dos grupos que criaram a casa e é muito atual, essa ideia de ser um lugar de memória, entendendo essa memória não como um olhar para o passado, mas como ação no presente.
“As pessoas entram na Casa do Povo e falam: nossa, mas o que acontece aqui? Acontece o que você quiser propor. São espaços flexíveis. O espaço se expressa de fato na arquitetura, foi pensado como um lugar onde as pessoas pudessem vir, propor, usar. Nunca foi, nem nos primórdios, uma coisa de cima pra baixo, com uma programação rígida. O Benjamin foi muito sensível ao entender como isso podia ser atualizado sem perder a lógica da missão inicial. E o prédio, imagina, se hoje em dia ainda precisa de um forte esforço de restauro, na época estava em condições inabitáveis mesmo, sem água, sem luz, sem ter banheiros direito. Então ele foi usando os espaços que eram possíveis, partindo do térreo. E essa programação vai ganhando reconhecimento, as pessoas vão voltando e os recursos vão voltando também. Aí se começa a conseguir sanar problemas administrativos, dívidas e tudo mais, começa a conseguir ampliar um pouco a programação, fazer alguns reparos no primeiro andar que permitiram então usar dois andares, aí vem mais gente, mais dinheiro e aí assim por diante. “
É um círculo virtuoso. Ao invés de esperar juntar 10 milhões de reais para reformar o prédio e daí começar a funcionar, vamos começar a funcionar, mostrar a capacidade, a potência desse lugar e dessa comunidade.
“A gente é reconhecido como referência no bairro, tem o reconhecimento internacional, reconstruiu a governança, contratou uma equipe técnica, criou um modelo de sustentabilidade econômica. Então fizemos a lição de casa e agora sim, nesse exato momento, a gente vai atrás do dinheiro para de fato reformar o prédio, incluindo o teatro, o elevador que hoje não funciona… Para tudo isso já foi feito um projeto com o colegiado de arquitetura. A gente já fez o projeto executivo e os complementares, já foi detalhado e orçado. Sabemos o quanto precisamos, que é em torno de 8 milhões de reais, e sabemos como vamos fazer. O orçamento anual da casa, hoje, é de 2 milhões de reais. Pensa que a Pinacoteca é dez vezes isso, só para você ter uma perspectiva.”
“Nós temos receitas de diferentes fontes, mas não tem nenhum apoio permanente, não tem nada garantido. A Casa do Povo é uma associação sem fins lucrativos, com interesse público, porém privada, que recebe doações de pessoas físicas e jurídicas, além de prêmios e editais, e do nosso jantar anual de arrecadação. Para dar alguns exemplos recentes, ano passado a gente ganhou pela segunda vez um edital do Ministério das Relações Exteriores da Alemanha, um fundo emergencial para ajudar projetos a enfrentar a pandemia. Uma das coisas que a gente fez foi reformar a cozinha. Em 2021, a gente também venceu o Prêmio Governador do Estado de São Paulo, que é tipo o Oscar do setor, a nível estadual, na categoria museus e centros culturais, que foi um super reconhecimento.”
“Nós temos um programa de associados. A gente é uma associação, então tem pessoas com direito a voto na Assembleia que podem se eleger a cargos do Conselho, da diretoria. Esse é um conselho voluntário, não remunerado, mas que tem ingerência sobre a governança e que contribuiu financeiramente. Existem outras pessoas que fazem parte do Programa de Apoio Recorrente, uma coisa que lançamos há dois anos e já temos 300 amigos. Tem pessoas que pagam de R$10 a R$500, não é um programa em que você é Golden Plus Premium e tem um pacote de benefícios proporcional ao seu dinheiro. Você entra, dá o que quiser, todo mundo é igual e a gente começa uma jornada. Para nós, é mais importante o tempo que você vai ficar conosco do que o valor que você vai dar. E aí é muito legal, vamos criando surpresas e benefícios ao longo da jornada.”
Durante a pandemia
“A gente nunca fechou. Na verdade, foi o contrário. O centro foi muito atingido, o Bom Retiro é um lugar em que as moradias são muito precárias, as pessoas moram em cortiços. O nível de contaminação era gigante. Fora a população de rua, que aumentou vertiginosamente, tem a questão dos dependentes químicos, tinha a questão das mulheres em situação de prostituição na Praça da Luz. A gente não podia fechar esse prédio, três mil metros quadrados com essa infra no coração do furacão. A gente decidiu fazer aquilo que a Casa do Povo fez desde os anos 1950: usar esse espaço como abrigo, criar soluções para viver em comunidade. Foi uma loucura, todos os museus e espaços culturais estavam tentando fazer análogos da sua programação no virtual, mas a gente voltou essa energia para criar o Cuide do Bom Retiro, uma rede criada com as ocupações do bairro, grupos e ONGs que já atuavam aqui antes da pandemia, e as instituições culturais que são nossas vizinhas, a Pinacoteca, o Museu da Língua Portuguesa, o Museu de Arte Sacra, o Museu de Energia, e comerciantes do bairro. Nessa época, a gente freou a campanha do restauro do prédio. Não era hora de pedir dinheiro pra Casa do Povo, era hora de acudir as pessoas. “
Um lugar de comunidade
“A coisa dos encontros improváveis é uma coisa que a gente fala muito aqui na Casa do Povo. Isso é muito do nosso cotidiano. Então, por exemplo, numa segunda-feira normal, você tem o Coral Tradição, que é o coral de mulheres octogenárias que cantam em iídiche, essa língua nômade das pessoas do Leste Europeu que fundaram a casa. Elas vêm ensaiar.”
“Neste momento estão em uso todos os andares, menos o teatro, que é usado pontualmente, com número de pessoas limitado, com bombeiro e tal, porque ele é muito danificado. Recentemente fizemos o "Leste", que foi uma coisa maravilhosa, indescritível, caminhando pelo prédio, começava no teatro e aí as pessoas vinham no terceiro andar, e como os atores não estavam em cena, você tinha duas telas, as pessoas sentavam ao longo das janelas e história se passava nesses dois telões, uma imersão, era como o ambiente de uma instalação audiovisual.”
“Aí tem os meninos da Favela do Moinho que treinam boxe aqui há uns quatro anos! É um grupo de cuidado, porque essa molecada vem aqui, ninguém lanchou, ninguém comeu, aí as voluntárias preparam lanche pra eles, tem toda uma linha também de educação alimentar. Aí eles treinam e comem de novo. Um dos nossos maiores talentos é uma menina que é carroceira. Ela é uma atleta do boxe!”
“Aqui no andar de cima tem a É Nóis, que é a escola de jornalismo para jovens da periferia. Eles estão aqui há bastante tempo, são um exemplo de coletivo que já tem uma estrutura, tem captação própria, tem total autonomia.”
“Tem o pessoal das rádios piratas bolivianas, que usa a casa para fazer eventuais reuniões, tem o MPL, da tarifa zero, grupos ligados a uma atuação mais ativista, e os grupos ligados a uma atuação experimental e artística, como o grupo Mexa, de mulheres trans do bairro e pessoas em situação de vulnerabilidade que criam o próprio repertório, que contam histórias a partir da visão delas, uma coisa que a gente tá vendo que vai estourar, tá na iminência de virar um negócio extraordinário, de ganhar a visibilidade que elas merecem.”
“Tem a Coletiva Ocupação, um grupo teatral de performance dos secundaristas que nasceu em 2015, na época da ocupação das escolas, e que já criou várias peças. E tem esses grupos mais ligados ao bairro, como a cooperativa de costureiras, tem alguns que são ligados a uma raiz mais judaica, como o Coral e o Círculo de Reflexões Sobre Judaísmo Contemporâneo, que é um grupo num formato mais tradicional de trazer alguém para falar, mas sempre colocando luz em questões do pensamento da cultura judaica, olhando para questões contemporâneas. Tem a Clínica Aberta de Psicanálise, um grupo de psicanalistas que estava online e que vão voltar a atender de forma presencial porque as pessoas que eles atendiam antes da pandemia não são pessoas que vão abrir o computador. Era muito legal, você andava pelo prédio no sábado e via duas cadeirinhas ali no patamar da escada, no jardim lateral, aqui no terraço, para tirar essa ideia um pouco do divã, dessa coisa sacralizada da psicanálise. E tem um grupo que a gente ama também que é o Mitchossó, mulheres coreanas que moram aqui no bairro, em uma média etária dos 25/30 anos, ou seja, uma geração nascida no Brasil que fala português, que discute questões da herança coreana em contraste com um panorama feminista.”
“A programação da Casa é feita muito pelo que a equipe propõe como instituição. Por exemplo, a Leste fez parte de uma programação da Casa do Povo. É muito difícil a gente ter aqui uma exposição como você veria na Pinacoteca. Isso que está atrás de você é uma obra da Renata Lucas, essa bandeira, que vem furando todos os pavimentos e esse Brasil encalhado, chama Andar de Cima, é um jeito nosso de lidar com a arte contemporânea. A gente convida artistas para construir a instituição a partir da história da instituição, a partir da arquitetura, combinado a um contexto mais geral. Então são características muito diferentes, mas a gente entende tudo como cultura.”
”Aí você tem, numa terça-feira, as mulheres em situação de prostituição da Luz fazendo sabão junto com as mulheres trans do bairro, uma iniciativa que a gente incubou na pandemia. Elas criaram o Sabão do Povo, que tá super ativo e é muito legal. Tem o Coletivo de Comunicação Não Violenta, que durante a pandemia fez uma banquinha, literalmente uma mesa na calçada para ajudar as pessoas a requererem o auxílio emergencial. As pessoas sequer tinham CPF, não tinham internet, às vezes não eram alfabetizadas. Começou com isso e ao sentar com a pessoa e falar, você começa a ouvir. E aí você começa a conhecer as pessoas. Essas coisas foram uma puxando a outra, uma imersão no bairro, mas muito na base da escuta e respondendo às demandas à medida em que elas vinham. Lógico, tudo sempre alinhado com a nossa visão de que cultura não é só o quadro na parede, a peça de teatro. Cultura é cozinhar junto, cultura é tudo isso.”
As pessoas falam 'nossa, como vocês são criativos!'. Não, isso é escuta. A gente não inventou nenhuma dessas ações, a gente se colocou à disposição.
“A Casa do Povo tem um posicionamento político/filosófico muito claro. Nós somos do campo progressista. A Casa do Povo é, na verdade, um sintoma de uma vontade que acontecia no mundo inteiro, principalmente no pós-guerra, de criar uma grande frente antifascista e apartidária, tentando imaginar outras formas de convivência que evitem que a gente passe por aquilo que passamos como sociedade. Então não somos uma invenção avulsa e singular, existem outras Casas do Povo que talvez tenham se transformado ou deixado de existir, mas nosso ímpeto antifascista e progressista é uma coisa que permanece. Porém, somos totalmente autônomos no ponto de vista de vínculo partidário. A gente sempre faz uma sondagem para entender com outros pares se existem pessoas que podem dar um pouco mais de informação do background do grupo que quer atuar aqui, para entender se realmente existe uma necessidade a ser suprida, se vai fazer diferença naquela proposição ter ou não um espaço como a Casa do Povo. E, além disso, há questões mais ligadas à infraestrutura, então a gente sempre prioriza a nossa programação e a dos grupos que já estão aqui. É um pouco um quebra-cabeça, a gente não divide espaço, os espaços são compartilhados, o que a gente divide é o tempo.”
🏠 Onde encontrar a Casa do Povo
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