[Paulicéia 060] Emicida assina prefácio de novo livro da Raquel Rolnik, leia trecho
Uma conversa sobre as raízes da capital em "São Paulo: planejamento da desigualdade"
A coisa mais legal de fazer o Paulicéia é conversar com pessoas que aprofundam meu entendimento sobre a cidade. A Raquel Rolnik, por exemplo. Na entrevista de segunda-feira, a urbanista, professora e escritora falou (entre outras coisas) sobre a ideia de que São Paulo é assim por falta de planejamento: "Não é verdade. Em todos os momentos de inflexão se decidiu, por circunstâncias diversas, tomar um determinado rumo. E nós sofremos as consequências disso." Essa fala resume o mote de "São Paulo: planejamento da desigualdade", uma reedição de "O que é São Paulo", que Raquel acaba de lançar pela Fósforo. No livro, ela explica por que São Paulo é como é, quais foram as decisões tomadas para que a cidade em que vivemos seja tão difícil e desigual — uma "cidade da morte", como ela mesma diz.
Mas o livro também tem uma nota esperançosa, que Raquel comenta abaixo.
"Uma coisa muito importante nessa revisão, vinte anos após a publicação original, é o lugar que a questão racial ocupa na história da cidade. Não é à toa que estamos vivendo um momento em que o movimento negro tem pautado o país de forma bastante intensa. É um momento bastante especial, e fazer uma leitura a partir daí é muito importante. A ideia de trazer o Emicida para o livro tem a ver não só com a enorme admiração que tenho por ele como pensador, mas também para ter interlocução com alguém que vem da periferia de São Paulo, do movimento negro, e que agrega mais elementos pra essa história. A emergência desses novos sujeitos periféricos é uma das novas questões que estão colocadas na cidade hoje, com potencial de produzir inflexões na sua política urbana — é essa esperança que o livro traz."
Prefácio de "São Paulo: planejamento da desigualdade" por Emicida
(publicado em acordo com a Editora Fósforo, todos os direitos reservados)
"Quando me mudei para o extremo norte da Zona Norte de São Paulo, o bairro Jardim Brasil Novo, que fica entre a serra da Cantareira e a rodovia Fernão Dias (aliás, mais uma das muitas contradições brasileiras, em que um invasor de terras e exterminador de nativos passa a dar nome ao chão onde os descendentes dos derrotados tentam sobreviver), era um lugar tão ao norte da cidade que meus colegas faziam piada dizendo que eu poderia me considerar morador da Zona Sul de Minas Gerais, tamanha a distância. Havia na região apenas seis casas. Todas elas de famílias pobres, vindas de alguma outra margem distante da mancha urbana produzida pela densidade populacional paulistana.
Pouco mais de um ano depois, já com mais algumas casas, fomos expulsos pelo poder público sem destino certo. Embora todos estivessem ainda pagando por seus terrenos, descobrimos que na verdade a empresa que apresentava o loteamento, com planta urbanística, lotes igualmente divididos, quadras amplas etc., na verdade não era proprietária do terreno. Estávamos no meio de uma maracutaia que misturava grilagem, roubo de terras e esquema de pirâmide, com todas as economias de uma vida comprometidas.
Vimos os tratores, escoltados pela polícia militar, derrubarem casa por casa, algumas ainda com móveis dentro, não tinha dado tempo de conseguir um carreto. Numa triste remontagem de “Saudosa maloca” e “Despejo na favela”, canções doloridas de Adoniran Barbosa, assistimos a tantos sonhos da casa própria desmoronarem de uma única vez. Os pobres homens‑engrenagem que operavam as máquinas, ou faziam a escolta delas, só repetiam o refrão do autor de “Trem das onze” ante o pranto e os gritos dos que ficaram até o fim para ver com os próprios olhos a desgraça que lhes abateu — é uma ordem superior.
Eduardo Galeano, já no início de seu clássico As veias abertas da América Latina, nos pergunta: como uma terra tão rica deixou os homens tão pobres? São Paulo, a terra das oportunidades, poderia reorganizar a indagação da seguinte maneira: como um lugar cheio de sonhadores pôde se transformar num pesadelo?
Um ano depois, os moradores entraram em contato uns com os outros e chegaram ao consenso de que precisavam resistir a tamanha injustiça. Decidiram sair das casas de parentes onde foram amontoados às pressas e ocupar o local pelo qual haviam pago com o dinheiro de toda uma vida. Agora, sem orçamento para casas de alvenaria, lajes etc., um mutirão conseguiu madeirites e telhas para todos, e centenas de barracos ocuparam aquela colina no pé da serra.
E assim o Jardim Brasil Novo se tornou idêntico ao velho Brasil."
Sou freelancer desde que comecei a trabalhar com redação/internet lá em 2000 e pouco. Tive passagens como "fixa" em alguns lugares (MTV, BuzzFeed), publiquei livro por editora mainstream e escrevi muito pra mim mesma no Medium, mas a maior parte da minha produção em vinte anos escrevendo foi como freelancer para veículos que vão de Folha de SP a MatadorNetwork passando por blogs, brand mags e revistas de grande circulação que não existem mais. Tenho certeza que tudo isso me preparou para conseguir olhar com uma mistura de frieza e entusiasmo para oq faço hoje: o Paulicéia, projeto de jornalismo independente sobre cultura em São Paulo que tem o Substack como plataforma apoiadora.
É sobre esse assunto que falo nessa quinta, às 11h, com os colegas Alexandre Orrico e Alexandre Aragão na live VIDA DE FRILA, sobre os muitos caminhos da vida de freelancer, seus percalços e perspectivas. O papo acontece via Zoom e é gratuito.