[Paulicéia 065] Thiago França: "O Carnaval me aproximou da vida política da cidade"
O líder da Charanga do França fala sobre a sua relação com o Carnaval de São Paulo e com o bloco que leva seu nome
Thiago França, o cara do saxofone com chapéu de pirata no meio da bagunça carnavalesca da Espetacular Charanga do França, escolheu seu instrumento ainda na infância. Mineiro de uma família de classe média que veio morar em São Paulo, e com pai, mãe e avó ligados em música, ele pediu um saxofone de presente sem nem saber direito o que era. Ganhou um. E lá se vão mais de trinta anos ligado ao instrumento que hoje lidera multidões de foliões pelas ruas da Santa Cecília todos os anos – ou quase: ano passado não teve Charanga. E esse ano teve, mas não na rua. No papo abaixo, França fala sobre a sua relação com o Carnaval de São Paulo e com o bloco que leva seu nome.
Como pintou o Carnaval
"Eu sou músico e o grande prazer que tenho na vida é tocar, não falo não para nenhum trampo, só se for impossível estar em dois lugares ao mesmo tempo. Quando entrei para o samba, entendi que era um universo em que eu precisava mergulhar. Fiquei inserido uns dez anos, e isso foi o que realmente consolidou a minha formação, toda a minha base musical é do samba. E o Carnaval tá junto. Nessa época aí, com 16 anos, eu falava pro meu pai que ia jogar videogame na casa de algum amigo na sexta-feira à noite e tava no rolê tocando em algum boteco com as bandas, ficava tocando e ia dormir de manhã. Tocava na igreja, no Hangar 110, no Prainha da Brigadeiro com Paulista quando era só uns botecos. Numa dessas, tinha um cara que era muito amigo meu e passava feriados num sítio dele no interior de Minas, onde a família tinha uma pousadinha. E aí desde os 16 anos eu ia passar o Carnaval lá, levava o sax e ficava tocando. Ninguém profissional, a gente não ganhava nada com isso, mas ia fazendo. O primeiro trampo real em que ganhei dinheiro para tocar foi no Carnaval de 2001. Um motivo de grande lamentação, porque tive essa efeméride no ano passado com meus 20 anos de carnaval, com esse saxofone eu tenho que em 2021 também completou 100 anos."
O sax
"Esse sax é o motivo de existir a Charanga. Meu primeiro instrumento foi um sax alto, aí logo depois eu já quis passar pro sax tenor e fiquei com tenor a vida inteira. Em 2012, eu tava na oficina do China, meu luthier, o cara que conserta o sax, e ele pediu: faz um favor pra mim? Tem um moleque aí com a mãe querendo escolher um saxofone, o moleque não toca nada. Dá uma tocada só pra ele ver que o negócio tá funcionando. Ele tinha uns três ou quatro saxofones, eu peguei um e disse: esse aqui é bom, é leve, vai ser bom pra você e tal. E tinha esse que é velho, com a mecânica super dura e tal. Na hora que eu dei a primeira nota, assim, me deu um frio na barriga. Eu olhei pro China e falei: mano do céu, fudeu. Com o coração apertado, falei pro garoto: ó, esse saxofone ele é pesado, é duro, a mecânica dele é difícil, ele é bem antigo, mas eu nunca ouvi um som de sax alto tão bonito. E aí a mãe virou e falou que ia dar uma pensada e eu virei pro China e falei: esse sax é meu, vou levar agora. Ele tem o som que a vida inteira eu ouvi de música brasileira velha, de choro, da Orquestra Tabajara, essa coisa de samba-canção. E foi louco, porque foi logo depois de uma época, entre 2009 e 2012, que eu tava há 10 anos tocando só samba – em 2005 estava disputando samba-enredo no Camisa Verde e Branca, uma imersão profunda no samba, e aí de repente tive uma ruptura total e absoluta com isso, que foi quando lancei o meu primeiro disco, que é um disco de gafieira e começaram as experimentações do Metá Metá, do "Sambanzo", free jazz, improvisação livre, pedal, um som carregado, tenso. Eu tinha parado de tocar samba, parado de tocar choro, não fazia mais roda, e o instrumento me trouxe isso de volta. Era isso que eu precisava para poder fazer as pazes com essa porra toda. E foi por conta desse sax que eu falei: vou inventar uma banda para poder usar esse instrumento. Aí que nasceu a Charanga."
Botando a mão no Carnaval
"Entre 2000 e 2004 eu voltei para Belo Horizonte, fiquei morando lá por quatro anos. Foi aí que começou toda essa imersão com o samba, fazendo baile de Carnaval pra valer, tocando mesmo. Aí cheguei aqui em São Paulo e continuei. O primeiro bloco em que eu toquei foi o Ó do Borogodó, e além do bloco eles tinham o carnaval de salão também. Então eu tocava lá, daí chegava um cantor e chamava pra tocar no Paineiras, sempre no esquema marchinhas, samba, axé. Chegou uma hora em que eu vi que precisava fazer as coisas mais do meu jeito, porque tava de saco cheio, era sempre no ‘vamos aí’, nunca tinha ensaio, e não tenho prazer em tocar as coisas de qualquer jeito, queria que tivesse uma concepção, uma cara, uma sonoridade própria."
"Quando eu morava em Belo Horizonte, era muito frequentador do Mineirão, e o Atlético tem a Charanga do Galo, que todo jogo tá lá, é um grupo de percussão e sopro e os caras ficam tocando marchinha de Carnaval no meio do jogo para animar a galera. E decidi: vou fazer uma charanga. Ainda fiquei receoso, só sopro e percussão, não tem uma harmonia e tal, cheguei a fazer um ensaio com um cara de cavaquinho, mas não deu certo, não era isso, é só sopro mesmo. E uma coisa é no estádio, aquela maluquice, mas como fazer show disso? Então fiquei um pouco receoso no começo, mas aí também, nessa época, eu descobri o disco do Siba com a Floresta que é isso: percussão e sopro. Senti aquele buraco que tem, a falta da harmonia, dos acordes explicados, e falei: dá pé, dá certo! E aí foi isso. "
"A Charanga era pra ser um projeto de pré-carnaval, baile e palco. Os primeiros bailes foram um fracasso total. São Paulo ainda não tinha entendido que Carnaval é legal e que o Carnaval de São Paulo podia ser legal. A galera gostava de viajar."
Ponto de virada
"Em 2013, quando o Haddad assumiu a Prefeitura e começou o papo de ocupação das ruas e tal, existia uma portaria que inviabilizava qualquer evento de Carnaval e que o Haddad retirou. Era uma proibição velada que vinha da ditadura. Antes tinha bloco aqui no Centro, as escolas de samba tinham seus cordões de rua, mas na ditadura tudo isso foi proibido junto com o AI-5. Essa restrição só foi de fato suspensa no primeiro ano da gestão Haddad, então em 2014 começou a ter o edital de inscrição de bloco. Eu ainda estava meio despreparado, mas a gente tocava, tinha baile, tinha coisa pra fazer. E aí, entendendo todo o viés político da coisa, a ocupação do espaço público, o Carnaval como uma plataforma de luta, de laboratório de autogestão, de participação na vida pública da cidade, tudo isso, fui me encantando mais por esse lado do que pela simples ideia de tocar na rua."
Primeira Charanga
"Foi em 2015. Eu fiz um post no Facebook e de repente em vinte minutos a coisa já tinha fugido completamente do controle. Pra você imaginar, uma hora recebi uma mensagem dizendo "Oi, tudo bem, falei com a Camila e a gente tá combinando que ela vai arrumar e cortar o tecido e eu vou costurar para fazer o estandarte. Se tiver alguma ideia, uma arte, alguma coisa assim, me manda." E eu, opa, legal, quem é Camila, e quem é você? Foi assim. Foi aparecendo gente, as pessoas foram querendo se envolver. As duas primeiras pessoas que me escreveram, tipo trinta segundos depois de publicar o post, foram a Talitha Barros, do Conceição Discos, que falou"você sabe que vai ser aqui na porta, né?" e a Alice Coutinho, que é minha amiga há muito tempo, uma super compositora de Recife. A família dela organiza um dos blocos mais tradicionais de Recife e Olinda, o Acho É Pouco, e ela me escreveu já com o link dos cadastros da Prefeitura, da CET, já tava com tudo pronto em tipo cinco minutos. São essas duas figuras fundamentais que me ajudaram no Carnaval. Só que a Charanga começou a ficar muito maior do que o Carnaval. No primeiro ensaio eu já tinha quatro músicas inéditas, que são as quatro músicas do primeiro disco da Charanga. E aí eu comecei a compor para Charanga, e foi criando uma consistência artística."
"Originalmente, eu não tava tão convencido de tocar na rua, e a galera da banda também tava achando péssima essa ideia. Poque a gente pensava que ia deixar de tocar em lugar fechado, com cachê pra todo mundo, para tocar na rua, se matar de tocar e não ganhar nada. Essa conta não fecha, como é que vai ser isso? Então, até o segundo ano da Charanga eu ainda continuei fazendo Bloco do Ó do Borogodó e tocando algumas noites fazendo baile. E aí foi depois, no Carnaval de 2017, que começou a Oficina da Charanga, né? Aquela ideia linda e maravilhosa, chega aí, vamos tocar todos, e muita gente falando pô, mas eu não consigo chegar e tocar, tem que ter ensaio, e aí uma galera me procurou e me convenceu a fazer isso, de organizar, teve uma parceria bacana, então nos dois anos seguintes a gente conseguiu um patrocínio via Proac. E aí depois a gente não conseguiu mais, mas a coisa já tinha ganhado corpo. E aí seguiu sozinho com as próprias pernas."
2020-22
"Imagina, no Carnaval de 2020 o Dráuzio Varella estava falando que a Covid não ia chegar no Brasil. A gente tava tipo naquele papo de que ‘não, mas aqui o clima é mais quente, o vírus não resiste’.
“Um palpite meu é que talvez as autoridades tenham deixado rolar. Naquele momento ali, cara, eu acho que se tivesse virado ali em 2020 e mandado cancelar tudo, ia ser uma confusão."
"Em agosto de 2020 já estava claro que não ia rolar o Carnaval de 2021. Mesmo o de 2022, beleza, a gente fez o cadastro, até soltei um aviso no Instagram da Charanga, mas não tava botando muita fé porque a comunicação com a Secretaria de Cultura a partir de outubro já é muito intensa, é semanal. Estávamos chegando perto do Natal e ninguém tinha falado nada. Na primeira semana de janeiro, antes de explodirem os casos da Ômicron, que a gente já sabia que ia acontecer por causa do Réveillon, eu sentei com a Talitha lá no no Conceição e concordamos que estava estranho. Porque a essa altura já era para ter alguém da Secretaria de Cultura mandando mensagem dia sim, dia não. E aí, porque a gente sabe o trampo que é, o tempo de preparação que a gente precisa, quando chega 10 de janeiro e tá todo mundo quieto, a gente sabe que não tem tempo para fazer o bagulho. Antes de ser oficializado que não ia ter Carnaval, eu já tinha sentado com a Talitha e cancelado o rolê dos ensaios abertos. e aí no dia seguinte saiu a notícia de que não ia ter Carnaval oficial da cidade. Mas festa fechada a gente tá fazendo desde janeiro.”
"Tem duas questões importantes: primeiro que evento fechado a gente nunca deixou de fazer. A banda sempre fez, no Mundo Pensante, na Casa de Francisca. As pessoas falam coisas na internet com uma sensação muito superficial, de que vai elitizar o carnaval, mas isso é um quarto de verdade. Tocar em lugares em que eu sempre toquei não muda em absolutamente nada a minha realidade. O segundo ponto é que a gente não tá fazendo nada clandestino. Se tá liberado, se pode fazer, eu vou fazer, porque eu preciso trabalhar, preciso pagar as minhas contas. Na primeira fase da pandemia, enquanto a classe média branca tava fazendo home office, todo mundo falou de saúde mental. Aí agora que essa galera continua trabalhando e pode sair e fazer coisinhas, foda-se a saúde mental de quem só tá podendo voltar a trabalhar agora.
“Eu tenho uma luta pela cultura, eu não abro mão de fazer o que faço, não acho que é desimportante, não acho que é supérfluo e que pode esperar. Eu vou fazer.”
"Agora, a tentação que não caio é esse formato de blocódromo, a ideia do Prefeito de botar os blocos lá no Sambódromo, porque isso é um laboratório pra tirar o Carnaval da rua. Ah, mas vai ter um cachê da Prefeitura e tal. Essa isca eu não mordo. Isso existe desde que o PSDB assumiu a Prefeitura, desde a primeira reunião que foi feita em 2018, quando o Dória virou prefeito, já tinha o pessoal falando: mas e se a gente fizesse um circuito que deixasse todo mundo mais organizado e junto? E aí todo mundo fala que não. E todo ano essa história volta."
A Oficina
"O Carnaval tem me aproximado da vida política da cidade. Da vida política nesse sentido amplo. A música é uma ferramenta muito poderosa, através da música conseguimos criar uma comunidade. Tô falando não das pessoas que colam no bloco, mas das que participam e fazem a oficina. Ter contato com a música é uma coisa transformadora num nível pessoal profundo. Tem uma força meio utópica, quase inocente, porque é óbvio que a gente é uma pedrinha pra tentar derrubar um avião, mas ainda assim é capaz de transformar positivamente a vida das pessoas. No momento em que falamos da questão da saúde mental, do quanto é importante, isso também é saúde mental, é cuidar das pessoas, criar relações, vínculos afetivos, construir coisas, se sentir parte de alguma coisa. Isso me motiva. Estar do lado das pessoas que tão ali pelo amor. E pelo carinho que têm pelo meu trabalho também, né? A Charanga tem um obstáculo um pouco maior, não é você comprar um tamborim e ficar ali picaretando em qualquer lugar, é mais caro, tem uma dedicação maior. Fico muito feliz por isso, de poder contribuir com este cenário, essa coisa de deixar a cidade um pouquinho mais humana, abrir essa porta pras pessoas, é uma coisa que me motiva a continuar fazendo sempre."
Apenas para apoiadores do Paulicéia: Thiago França conta como é, na prática, produzir um bloco de rua em São Paulo.