[Paulicéia 029] Rafael Takano: "As festas online têm uma dinâmica de novas possibilidades"
DJ e criador da festa Súbete, de ritmos latinos, comenta a mudança da música e das festas durante a pandemia
A Súbete é uma das coisas mais paulistanas possíveis: uma festa de ritmos latinos modernos, comandada por um DJ paulistano de sobrenome japonês. A festa junta de imigrantes que fizeram de SP o seu lar à latinoamericanos de passagem pela cidade, todos na pista apertada de um inferninho no Bixiga. Ou pelo menos era assim até março do ano passado, quando a festa foi interrompida, como tudo o mais, pela pandemia. Nesse final de 2021, o criador da Súbete, Rafael Takano, finalmente encontrou o momento para retomar a festa de forma presencial, após um ano e meio de experiências online. No papo abaixo, Rafael conta que não sabe como serão os eventos presenciais, comenta a mudança da música durante a pandemia e assume ter saudades até de coisas que odeia – tipo gente pedindo música no meio do set.
Como a música latina se tornou importante na sua vida?
Cara, é interessante. Eu morei nos Estados Unidos, primeiro no Wyoming. E fui eu que escolhi. É um lugar pequeno, com menos informação, achei que seria legal para eu aprender a falar inglês, o custo de vida é mais barato. Fui para lá em 2005. Depois fui de novo, em 2006, mas daí para Los Angeles. Foi exatamente quando estourou "Gasolina", do Daddy Yankee. Nesse momento me entendi como latino. Aqui no Brasil a gente usa gringo como qualquer pessoa estrangeira, mas nos EUA tem essa conotação pejorativa: o branco americano ou europeu é o gringo. E lá, trabalhando em cozinha com um monte de mexicano e portoriquenho, de repente eu não era mais o japa, eu era estrangeiro e era latino, entrava nesse pacotão. Foi lá que aprendi a falar espanhol, inclusive, morava com argentinos, então foi toda uma imersão de latinidade. Foi o ano em que estourou RBD no Brasil também. Ninguém fala muito disso, mas percebo pela pista da Súbete que quando toca RBD a galera curte.
Peraí: toca RBD na Súbete?!
Cara, eu toco! Acho que faz muito parte da vida de uma galera de vinte e tantos anos que quando era criança ouviu RBD e teve o primeiro contato com a língua espanhola. E eles tinham uns reggaetons do mesmo ano de "Gasolina", com o mesmo produtor, então é muito significativo para a cultura toda. Depois o reggaeton ficou meio de lado. Na época eu achava que era uma coisa muito americanizada, muito de indústria cultural, e tinha aquela coisa "se eu sou latino quero ouvir merengue, salsa". Então reneguei o reggaeton durante um tempo. O estilo teve uns 10 anos de mormaço. E aí em 2016, quando a Anitta começou a fazer as colaborações dela, surgiu uma geração nova da Colômbia, que não era mais essa coisa tão americana de Porto Rico, Nova York, era uma coisa mais colombiana, mais tropical. Mais latina mesmo.
Antes da pandemia a Súbete ia completar um ano, vocês tinham feito onze festas?
Da Súbete, sim, todas no Estúdio Bixiga. A Calle Baile, que era minha festa anterior, era semanal no Jongo Reverendo, na Vila Madalena, e em outros espaços.
Por que no Bixiga?
Porque eu já tocava lá em outras festas. O Estúdio Bixiga é do Mundo Pensante, e eu tocava lá na festa Esquema, do Davi Carneiro, que é meu amigo e foi super importante na minha vida de DJ, tínhamos esse contato e aí eu pensei em fazer uma festa nova. Eu falei com o pessoal do Mundo Pensante, eles falaram do Estúdio, que tinha uma cara mais inferninho e tal. Eu acho que lá tem um tamanho bom, o clima bom, parecido com o que eu conheci de festas na Colômbia, festas para 100, 150 pessoas. Depois da pandemia, no online, chegou a ter 300 pessoas, com os ingressos via Sympla e transmissão pelo Zoom.
E agora você está pensando em voltar a fazer o evento presencial...
Sim, até pela grana. Eu segurei o quanto pude, tinha um dinheirinho guardadio porque ano passado ia pra Colômbia, passar um tempo lá, então tava com o dinheiro da viagem Aí veio um dinheiro da minha família que me ajudou, segurei mais um tempo, peguei um freela aqui, outro ali e fui dando uma segurada.
A festa mensal dava uma grana todo mês, a versão online da festa não dá?
Não dá. Nas primeiras até deu um pouquinho mais, porque estava todo mundo numas de ajudar, mas isso durou uns três meses. Eu nunca deixei o ingresso obrigatório, achava muito esquisito cobrar da galera para um negócio que não sabia muito bem como ia funcionar, se ia dar conta de transmitir de um jeito legal, se a conexão ia funcionar. Os primeiros meses foram de muitos testes. Então sempre deixava de graça e com valores de contribuição voluntária, no começo bastante gente pagou, mas aí rolou fadiga de Zoom, né? Tudo era Zoom, tudo era tela, cansou. No fim do ano passado mesmo a galera já começou a se encontrar em grupinhos, a ir para festa ilegal. As festas da comunidade latina meio que não pararam, tipo baladona ilegal mesmo. Então não tinha mais por que a galera ir na festa online. E aí, por um lado foi péssimo porque, enfim, menos dinheiro. Mas, por outro lado, quem continuou acompanhando bombou muito como comunidade assim, esse clima de "vamos manter vivo e vamos manter seguro, não vamos pra rua, não vamos encontrar, vamos incentivar".
O formato de festa online também permite a participação de DJs de outras regiões. Isso aconteceu com a Súbete?
Aconteceu. Eu consegui uma DJ que eu sempre quis trazer de Curitiba, veio um outro amigo nosso de Santa Catarina. Mas ao mesmo tempo, quando percebi que dava para fazer isso já não tava entrando mais grana, e eu fico muito incomodado de pedir favor, sabe? O cachê é pouco mas existe, e aí eu percebi ter uma hora que não dava mais para oferecer cachê. E tem as questões de tecnologia mesmo. Teve festa que eu chamei três DJs, chegou lá no dia uma DJ não apareceu porque ficou sem luz, a outra começou a tocar e travou o som dela. Parei de chamar. Até porque até pro DJ estar tocando para pouca gente, sem ganhar dinheiro, achei que não valia mais a pena. Mas sim, teve um período ali, de uns quatro meses, em que rolou uma integração legal e muita gente de fora vindo para a festa, não só DJs. Foi uma coisa muito positiva. Um público que não é só da cidade de São Paulo, mas também da grande São Paulo, do ABC, que não é necessariamente público da festa.
Qual o público da festa?
Não consigo definir, são vários grupos pequenos mas bem diferentes. Tem uma galera estrangeira que trabalha aqui, muita galera da Colômbia, Chile, Peru. Mas não sinto que eles sejam de uma comunidade latinoamericana imigrante. É uma galera que tá passando um tempo aqui, que vai voltar pro seu país, mas que sente vontade de ouvir uma música que está acostumado a ouvir, uma música que não é contemplada em todas as festas. Aí tem a galera da comunidade latina imigrante, filhos de imigrantes, que é uma galera que não tem um poder aquisitivo tão alto, mas que é muito ativa, que vai muito para festa, que vai muito pra balada, que dança muito, canta muito e sempre interage, mesmo fora do evento presencial tá sempre trocando ideia. E tem uns brasileiros também, uma galera que fez intercâmbio, viajou pela América Latina, ganhou esse sentimento de latinoamerica brasileira e quer ouvir a música que ouviu na viagem e que não ouve aqui de jeito nenhum.
Nas festas presenciais você chamava DJs latinoamericanos...
Eu chegava até eles nas festas e ia vendo quem tocava uma coisa mais parecida com a proposta da Súbete. Porque dentro da música latina tem muita coisa que é a cara do meu evento. Crossover colombiano ou guaracha, que é uma coisa muito mais eletrônica de EDM, não é o que eu quero colocar na minha festa. Cumbia também não é um estilo que toco muito, ou mesmo os ritmos mais tradicionais como salsa, merengue e tal, esses não são os ritmos que eu toco.
Quando é a próxima festa presencial de vocês?
Uma coisa que eu penso em fazer assim que voltar ao presencial é tentar transmitir a festa online. Gostei muito do formato, fui em muitas festas a que não iria normalmente e me diverti muito. É outra dinâmica, que abriu e manteve outras possibilidades. Podia beber e dançar, podia apagar a luz e botar strobo, podia interagir, paquerar, conhecer gente nova, achar uma música, que era uma das coisas que eu gostava de fazer no presencial, e ao mesmo tempo não tinha fila no banheiro, a bebida era mais barata, eu podia estar fazendo outra coisa. Assim, eu pintava unha enquanto tava na festa… Acontece muito isso na Súbete ainda, a galera faz bolo durante a festa e fica filmando o bolo. Eu amo isso, é maravilhoso. É isso, sabe, todo mundo vira um pouco VJ também.
E da experiência do online, o que você acha que vai levar para o presencial?
Nossa, não sei. Não tô vendo como tá o presencial agora. Mas sinto que a dinâmica será diferente, sim. A galera desacostumou a ter DJ tocando, se acostumou ao Spotify, não sei se vão pegar mal com o meu set colocando uma coisa diferente, se vai pirar muito se eu tocar uma coisa diferente. Tô com um pouco de medo até de dinâmicas negativas. As festas que eu faço são um espaço seguro para todo mundo, nunca teve briga. Eu falo isso no microfone: mano, respeita, se você vacilar você vai sair da festa. A comunidade das festas sempre foi mais feminina, e as frequentadoras sempre falam que é muito de boa. Mas uma coisa que sei que vou levar do online para o presencial é que nós achamos meios de manter a comunidade ativa. Grupo de WhatsApp, grupo de Instagram, grupo de música nova... Isso me trouxe uma perspectiva da comunidade não ser apenas a festa, a música,mas uma estética, um lifestyle. E até de outros estilos de música que a gente não precisa tocar na festa mas pode trocar. Levei isso pro perfil do instagram da Súbete, que é uma fonte de divulgação de conteúdo para essa comunidade que é pequena, mas é muito próxima. É a galera que eu quero nos primeiros eventos-teste, sabe? Eu não quero fazer festa pra cem pessoas agora, não faz sentido. Quero fazer festa com 30 pessoas, num espaço amplo. Eu quero essas pessoas dançando, quero poder falar com elas, quero que alguém possa me pedir música. Odeio quando me pedem música, mas agora até isso eu sinto falta! Porque essa troca faz bem.
Por que você acha que tem mais meninas nas festas de música latina?
Acho que é uma coisa muito de sensualidade, de corpo, de dança e de performance. Entra muito no discurso da produção, sabe? A gente sempre fala isso, faz post falando disso. A gente toca muita artista mulher. Fazemos esse esforço de deixar claro que este é o espaço mais seguro possível, que a gente tá ali para apoiar. Um dos motivos para escolher o Espaço Bixiga é porque eu já sei que a equipe tem esse cuidado também, é uma equipe cheia de mulheres trabalhando, a segurança tá de olho nisso. A gente procura espaços que já tenham essa cultura alinhada. Acho que tem a ver mais com isso do que com o estilo de música.
Quando você toca música brasileira, você toca o quê?
Isso é um dilema para mim também , porque sei que tem muita gente que vai para festa e que odeia funk. Mas eu gosto muito de tocar funk, sempre toco um ou outro assim, até porque agora tem um gênero, tem o dembow dominicano, que é o ritmo latino mais em voga. É como se fosse um reggaeton acelerado e a batida é muito parecida com a do funk 150. Os artistas de dembow dominicano usam batidas de funk como base. Então sempre coloco uma coisa ou outra, um funk rasteirinha que tem uma sincopagem semelhante, ou tento tocar algumas músicas que são letras que a gente conhece aqui, tipo "Bomba", que originalmente é uma música em espanhol. Tento fazer essas brincadeiras e conectar pra quem não tá acostumado. Ou misturando as duas.
Você sente alguma mudança na música durante a pandemia?
Muita! As pessoas não estão se vendo, e o mundo estar num clima de velório eterno impactou muito. Vê o funk, por exemplo, teve uma ascensão do funk consciente. Antes da pandemia a gente viu o funk ir de 130 pra 150 e a gente tava vendo ir de 150 pra 170, que é muito rápido, muito absurdo, muito frenético. O dembow dominicano cresceu muito, antes da pandemia, por causa disso. É um estilo muito mais rápido, agressivo, não no sentido de violência, mas de pegada. O perreo dos anos 90 tava voltando com muita força exatamente na época que a pandemia chegou, e aí deu uma segurada nessa onda, poucos meses depois veio uma onda de reggaeton romântico de novo, que era uma coisa de quatro, cinco anos atrás. O funk, a mesma coisa, voltou pro 130, foi pro 95, a temática também mudou muito. Eu acho que o reggaeton tem uma característica de ser uma coisa muito do corpo, muito sensual, da dança, então acho que não mudou tanto. Talvez o romântico tenha aumentado um pouco a produção. Mais coisa de casal, menos festa e balada. Mas agora já tá voltando, deu um salto do 95 pro 170 de novo.
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