[Paulicéia 059] Raquel Rolnik: "A história de São Paulo é centrada na classe média"
A urbanista, professora e escritora fala sobre o planejamento da desigualdade de São Paulo em novo livro
Raquel Rolnik, paulistana da Barra Funda, é professora titular da Universidade de Arquitetura e Urbanismo da USP, onde coordena o LabCidade, laboratório de pesquisa que acompanha a política urbana e a política habitacional de São Paulo, do Brasil e do mundo. Criado em 2010, o LabCidade está desde o início da pandemia acompanhando e registrando os impactos da Covid-19 na capital paulista, uma pesquisa que Raquel aprofunda em "São Paulo: o planejamento da desigualdade", lançado pela editora Fósforo em janeiro. O livro, atualização de "Folha Explica: São Paulo", de 2001, reconhece mudanças e movimentos contemporâneos, e coloca questões duras para a cidade que, como a autora registra, não é como é por acaso ou falta de planejamento: São Paulo é uma "cidade da morte" porque, historicamente, escolheu modelos que atendem aos interesses de poucos.
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É possível amar São Paulo?
“Todas as pessoas que amam São Paulo sentem amor e ódio, né? Como urbanista, sofro tremendamente pela nossa absoluta incapacidade de construir cidades para todos e todas, cidades que acolham e que sejam capazes de oferecer uma experiência urbana adequada. São Paulo está muito longe de oferecer isso. Urbanista no Brasil sofre porque não consegue ver uma realização profissional de cidades pensadas, uma relação mais harmônica com a natureza e com seus próprios moradores. Então tem o mal-estar da cidade.”
“São Paulo tem uma potência, uma dinâmica econômica, cultural e política. É frenética, muito cosmopolita, uma interseção de culturas. São Paulo é uma das cidades-mundo do nosso planeta.”
“Nós estamos vivendo um combo de crises1. A crise sanitária, provocada pela pandemia, chegou no momento em que a cidade já vivia os efeitos da crise econômica. São Paulo é a capital do capital, então quando você tem uma crise econômica, imediatamente isso se manifesta ali. A gente já estava vendo também, de uma forma mais ampla, a crise ambiental, a crise climática, e até a crise civilizacional, de modelo de organização, de relação humana. Quando São Paulo se paralisa completamente em função das enchentes ou do congestionamento, a discussão da mobilidade não é um fenômeno. Não é um acaso. Existe uma conjuntura, elementos estruturais que não funcionam. São opções de política urbana que foram tomadas ao longo da história da cidade, um modelo de urbanização, de relação com o território, que já estava e continua em crise. A pandemia tornou isso ainda mais profundo. Se tinha desemprego, o desemprego aumentou. A pobreza e a miséria são muito aprofundadas, a desigualdade é vivida de forma muito mais radical durante a pandemia.”
“Talvez seja unânime entre os residentes que essa cidade não funciona como deveria. Está evidente que esse modelo não está dando as respostas que a gente precisa.”
O planejamento da desigualdade paulistana
“No meu livro, vou contando como foram tomadas e definidas essas opções de políticas urbanas, e por quê. Muita gente pensa que São Paulo é assim porque não tem planejamento, e não é verdade. Em todos os momentos de inflexão se decidiu, por circunstâncias diversas, tomar um determinado rumo. E nós sofremos as consequências disso. É muito difícil comparar a cidade hoje, que é o centro de uma metrópole com mais de 20 milhões de habitantes, com o que foi no século 19. Estamos falando de outros números, de outra densidade. Mas existiam elementos lá atrás com uma relação mais bem resolvida, e que poderiam – e deveriam – ser retomados. Um exemplo claro que está no livro é o sistema de circulação. Até o comecinho do século 20, São Paulo circulava basicamente sobre trilhos – bondes ou trens. É aí que se formam núcleos e vilas em torno das estações. A Quarta Parada, o Tatuapé, a Lapa ou a Barra Funda eram áreas destacadas do núcleo urbano, conectadas pelo sistema ferroviário. A inflexão desse modelo acontece nos anos 1930, quando a cidade passa a começar a circular sobre pneus: carros e ônibus, partindo para um processo de autoconstrução das periferias. Esse foi um momento de decisão que dialogou extremamente bem, naquela conjuntura, com a mudança do modelo de moradia. Saiu das casas alugadas, dos cortiços, das pensões e das vilas, para a autoconstrução na periferia, com um modelo predominante de moradia das maiorias, dos trabalhadores. Hoje, retomar a mobilidade a pé e nos trilhos é uma demanda da cidade.”
“Um exemplo foi o movimento de um pedaço da classe média – historicamente beneficiada pelas políticas que privilegiam a circulação por automóvel –, que passou a aderir à ideia de que não quer mais circular de automóvel, e prefere morar em bairros centrais e circular de transporte coletivo. Politicamente, isso também é uma questão de poder. A história de São Paulo é centrada na classe média, voltada a partir dos seus desejos e necessidades. Essa ruptura de um pedaço da classe média exigir transporte coletivo, querer metrô, querer ônibus de boa qualidade, provocou uma mudança em São Paulo. E o que a gente tem hoje de rede de metrô articulada com rede de trem e corredor exclusivo de ônibus é uma mudança muito importante em relação ao que era o modelo da cidade nos anos 70 e nos anos 80 — e ainda é insuficiente.”
A São Paulo pandêmica
“No Lab Cidade nós acompanhamos como São Paulo foi vivendo a pandemia. Trabalhamos o acompanhamento da disseminação do contágio e das formas através das quais os territórios urbanos foram lidando com o desenvolvimento da pandemia. Foi a partir desse trabalho que escrevi o que aconteceu com São Paulo durante a Covid-19, de que modo a política urbana se manifestou. Decretou-se uma quarentena: fique em casa, migre para o home office, se isole. Essa política não levou em consideração, em nenhum segundo, que a possibilidade de home office, de isolamento, era uma situação completamente excepcional. Para a maioria da população isso simplesmente não se colocou. Para que uma parte pudesse ficar em casa, você teve uma parte enorme trabalhando. Em vez de pensar como proteger quem está se deslocando, que tem que trabalhar, o pensamento é: proteger quem vai ficar em casa. É evidente que a maior parte das pessoas não vai ficar em casa. É muito importante prestar atenção nisso para entender qual é a dinâmica da cidade.”
“Usei a imagem da estátua do Borba Gato em chamas como uma metáfora muito importante desse momento. Por quê? Primeiro porque botar fogo naquela estátua é dizer: escuta, pessoal, que cidade é essa? Para quem? Qual é a história dessa cidade? E porque o grupo que resolveu botar fogo na estátua é liderado por um entregador, que simboliza esse momento em que um pedaço ficou vivendo protegido e usando o delivery para sobreviver, comer e consumir, enquanto outra parte ficou circulando para propiciar essa experiência de forma absolutamente precária. Essa é a condição dos entregadores: não têm carteira assinada, não têm seguro-desemprego, não têm proteção contra Covid, contra acidente.
“Esse modelo ‘do salve-se quem puder’ tem sido o modelo hegemônico de gestão nos últimos anos. Estamos falando dessa cidade neoliberal, do desmonte da ideia de uma cidade solidária, que garanta a sobrevivência de todos, que redistribua as suas riquezas, as suas possibilidades. Essa cidade é a cidade da morte.”
A cidade da morte
“A maior causa mortis em São Paulo é acidente de trânsito, mais do que AVC e ataque do coração. Há um modelo de circulação que mata pessoas. Depois, temos um problema respiratório seríssimo em função da poluição. A poluição industrial foi bastante controlada, mas a poluição dos automóveis, a queima de combustível fóssil, envenena as pessoas. E se você pensar na alimentação, também vai construindo a ideia de uma cidade morta. As políticas de alimentação não asseguram o alimento fresco, não-transgênico e de qualidade para todos. É uma cidade muito tóxica.”
“A questão agora é pensar: é possível construir uma cidade para a vida? Um espaço onde se respire, se ande, se possa ter um lugar pra viver com qualidade, se possa circular com eficiência, onde andar no transporte coletivo não seja uma tortura?”
“O Centro Histórico é o núcleo dessa situação extrema, da pior crise de moradia que a cidade já viveu. A crise dos anos 20 do começo do século foi bem pesada também, mas a quantidade de gente vivendo nas ruas hoje é uma coisa absolutamente chocante. A gente vive uma crise econômica enorme, com desemprego, perda de renda, perda de poder aquisitivo, inflação alta. E, na mesma hora, tem o setor imobiliário bombando, crescendo, os preços dos imóveis e dos aluguéis aumentando sem parar, justamente porque esse circuito de produção não está ligado à demanda, às necessidades de moradia. Este circuito está ligado à disponibilidade de capital financeiro excedente que vai para o espaço construído. Então, imagina, tem um momento em que vai piorando a renda, a condição da miséria, e aumentando o preço dos imóveis, o mercado imobiliário totalmente descolado das necessidades da cidade, das necessidades das pessoas. O resultado disso é que a quantidade de gente morando na rua, em ocupações, fazendo novas ocupações na periferia hoje, é uma coisa que eu não via, acompanhando a história da cidade como urbanista, desde os anos 90.”
“O final dos anos 80 e começo dos anos 90 foi a década perdida, um momento em que começou a crescer a violência, aumentou o índice de homicídios, e o circuito do crime e do contrabando, dos mercados ilícitos, começou a tomar conta dos territórios populares. Foi um momento muito duro. Mas, ao mesmo tempo, nos anos 90 a gente estava vivendo a esperança de uma sociedade democrática, a luta pelos direitos, a ascensão de movimentos sociais. De certa maneira, a energia de construção política daquele momento contrabalançou a dureza. Agora está tudo muito difícil porque estamos de novo em um tempo muito duro, do ponto de vista econômico, e distópico do ponto de vista político. O governo federal dá a ideia de que pouco importa que a maior parte das pessoas more num buraco, passe fome, o que importa é crescer o PIB e acumular renda. Isso está explícito. Nesse sentido, é muito pior a situação hoje.”
O que é ser paulistana?
“Uma coisa interessante que vimos na pandemia foi que havia muita coisa falindo, mas havia muita coisa abrindo, coisa nova sendo inventada, um jeito de sobreviver e de existir. Isso é ser paulistano ou paulistana. É fazer do limão uma limonada, fazendo do jeito que dá para sobreviver, e ao mesmo tempo ir encontrando algum prazer de ser e viver, porque nessa cidade viver é uma luta.”
📚 Onde encontrar a Raquel Rolnik
Blog oficial
Twitter @raquelrolnik
“O que é a cidade?”
“A cidade e a lei”
“São Paulo, o planejamento da desigualdade”
Leia o prefácio de "São Paulo: o planejamento da desigualdade", assinado pelo Emicida.