[Paulicéia 074] Rebeca Lerer: "A mudança cultural é a mudança mais longa na curva da história"
A coordenadora do projeto Sinal de Fumaça fala sobre seu histórico de ativismo e a importância política da Marcha da Maconha
Ativista de direitos humanos com foco nas questões da violência e uso da terra, Rebeca Lerer já denunciou madeireiros no Amazonas, conversou com Kofi Annan em Genebra e colocou numa rua do Centro de São Paulo o primeiro parklet da cidade — isso em 2010. Hoje, trabalhando como consultora para ONGs e agências de comunicação, ela está à frente do Sinal de Fumaça, um registro em tempo real da destruição do meio-ambiente brasileiro promovida pelo governo Bolsonaro.
No papo abaixo, ela fala sobre seu histórico como ativista, sobre seus projetos atuais, sobre suas expectativas para o pós-2022 e sobre a Marcha da Maconha, que esse ano já tem dara: acontece em 11/06/2022, na Avenida Paulista.
Origens
Sou ativista de direitos humanos, nascida e criada em São Paulo, entre a Zona Sul e a Bela Vista. Me formei em jornalismo pela Cásper Líbero em 1998, fiz o primeiro ano, tranquei e fui dar um tempo fora do Brasil, eu tinha 18 anos. O Pitta era prefeito, São Paulo estava numa fase muito trash. E a minha família é bem classe média, minha mãe era professora, meu pai trabalhava em empresa, família é judia, então fui para Israel, que era o que estava no alcance naquele momento. Eu estava lá em 1995, quando mataram o Yitzhak Rabin, me politizei muito durante essa viagem, fui exposta a outra realidade, num tempo pré-internet, que me deu outra perspectiva sobre o mundo e sobre quais eram os problemas reais. Depois fiz um mochilão pela Europa, numa época em que você viajava com um guia impresso debaixo do braço. Não tinha nem União Europeia ainda. Essa viagem mudou muito a minha perspectiva de mundo, quando voltei pra faculdade de jornalismo já sabia que não queria trabalhar na mídia comercial. Fui trabalhar na S.O.S. Mata Atlântica, entrei nesse mundo das ONGs e assim começou a minha carreira no ativismo. Depois, entrei no Greenpeace numa época em que o escritório aqui no Brasil estava se expandindo muito, participei da instalação do escritório em Manaus, da campanha da Amazônia quando não tinha mídias digitais, foi todo um trabalho de comunicação analógico. Fiquei 11 anos no Greenpeace, que é uma puta escola, ainda quando havia muitos membros antigos, a galera que realmente fundou o Greenpeace. Tive a sorte de conviver com esses doidões, foi demais, aprendi muito.
Minha relação com o ativismo veio de ser muito nerd quando era adolescente, isso não era legal que nem é hoje, eu era uma menina que gostava de estudar, de ler, gostava de história, até hoje sou junkie de informação.
Trabalhei dentro de ONG até 2016, mais ou menos, quando fui pra Matilha Cultural, que estava abrindo em São Paulo. Fui diretora na Matilha por três anos e aí fui fazer outro tipo de ativismo urbano. Lá a gente fez plantio de árvores, todo um trabalho de adoção de cachorros, exposições falando sobre a Primavera Árabe, mudanças climáticas, pixo. Tivemos um cinema gratuito, fizemos ações com as pessoas em situação de rua ali na Cracolândia, que foi como entrei em outras pautas, passei pela Comissão Global de Política Sobre Drogas, fui trabalhar com Fernando Henrique Cardoso, Kofi Annan. Foi muito doido, trabalhei com esse 1% do mundo, tive a experiência de como é que funciona esse alto nível de influência política, de reunião com secretário-geral da ONU, ir para Genebra, coisas assim. Depois passei pela Anistia Internacional, na época das Olimpíadas, pela Aliança Pela Água, na época da crise hídrica aqui em São Paulo.
Eu quero estar onde for mais útil no momento, em campos que precisam ser fortalecidos. Desde 2016 sou consultora autônoma de projetos, trabalho tanto para agências de comunicação quanto para ONGs e coletivos. Já fiz roteiro do vídeo do Dráuzio Varella sobre maconha, fiz curadoria de conteúdo para vários projetos. Tenho atuado mais nos bastidores. Acho que precisa ter gente que atua nos bastidores. Tem uma competição muito grande, todo mundo quer falar e ninguém mais quer pensar, sabe? Mas alguém precisa pensar e ouvir.
Políticas culturais urbanas
A gente pode mudar as leis, melhorar o congresso, eleger, votar melhor e ter políticas melhores no geral. Mas a mudança de comportamento, a mudança cultural, é a mudança mais longa na curva da história. É um trabalho contínuo que você tem que fazer em muitos níveis, inclusive na questão estética, porque quem aparece, como aparece, o que é valorizado e o que não é valorizado também diz muito sobre o que a gente consome e deixa de consumir. Os rolês que as pessoas conseguem fazer, a vida noturna, a vida cultural é parte da nossa relação com a cidade. E se ela se dá apenas em espaços privados, com catracas, lugares caros ou inacessíveis, o que isso diz sobre uma cidade?
Tudo isso é política pública, mas também é cultura. E é política, para mim, no sentido mais profundo, que é como eu encaro o ativismo: nossa relação com o lugar que a gente vive, coletivamente. As pessoas reduzem a política a questões partidárias e ideológicas, quando ativismo é prática política.
A Matilha foi um espaço em que conseguimos fazer isso diariamente, com várias mídias e também com as ações de rua: a campanha pelo Parque Augusta, a Vaga Viva, que virou os parklets que a gente vê hoje. A gente fez a primeira Vaga Viva do Centro, fomos lá e ocupamos a vaga de estacionamento na frente da Matilha e lançamos essa ideia. Já tinham feito nos EUA (abaixo), nós não inventamos o conceito, apenas implementamos aqui. E pegou.
Eu acredito que as coisas caminham juntas e acho que falta um pouco de engajamento político da cena cultural no Brasil. No sentido não só de se posicionar num festival, que é super importante, ainda mais no contexto que a gente está vivendo, mas de dar sentido para os trampos que você tá fazendo. Eu entendo que é difícil para os artistas sobreviverem, porque a gente também não tem políticas de apoio à cultura que permitam que realmente façam seu trabalho independente de patrocínio, de marcas e tal, mas acho que às vezes falta um pouco de posicionamento, não sobre esse ou aquele governo, mas, por exemplo, sobre questões como transporte 24 horas em São Paulo. Essa deveria ser uma campanha dos próprios donos de casas noturnas e de quem trabalha na indústria da noite. Porque se você sai em Berlim, em Londres, em NY, você consegue voltar pra sua casa, não precisa de carro, não precisa pegar um Uber. Mobilidade urbana é um direito, essa é uma pauta de cultura urbana.
A gente começou em 2009, quando o prefeito era o Kassab, a Roosevelt estava passando por aquela mega reforma, a especulação imobiliária no Centro tava a milhão e a gente, com a Matilha, tentou trazer uma dinâmica de criar um espaço acessível dentro da tendência de gentrificação, com aquele monte de prédio começando a subir no Baixo Augusta. Quando veio 2012, a gente já estava engajado lá. O primeiro soundsystem que ligaram na Roosevelt, em 2012, foi o nosso. Depois veio a eleição do Haddad, um momento que, como cidade, podemos ter um outro olhar. Eu reconheço todos os avanços. Mas, ao mesmo tempo, isso criou uma zona cinzenta em torno da prefeitura, porque vários amigos nossos foram para dentro do governo, e aí quando você reclama parece que é pessoal. E não é. Eu vou ser ativista sempre, independente de quem seja o governo. Fui presa várias vezes nos governos Lula e Dilma, fui ameaçada. Piorou com o Bolsonaro? Piorou muito. Já era difícil? Já era difícil. Vai continuar difícil quando o Lula for eleito? Estamos aí torcendo pra isso. No ativismo, não trabalho com partido político, nunca trabalhei com governo nenhum, nem para nenhuma empresa privada. Esse é o meu princípio, e a grande conquista é conseguir ter 26 anos de carreira mantendo essa independência.
Sinal de Fumaça
Sempre trabalhei com duas pautas principais: a questão de terra, que tem a ver com floresta, mudança climática, uso da terra, mineração, agrotóxico, o agro, todas essas pautas, e a questão da violência, em especial política de drogas, o proibicionismo, tudo que isso gera em torno de mortes provocadas pela polícia, superencarceiramento, genocídio da juventude negra. São pautas enormes, cabe praticamente tudo aí dentro. E, no momento, tô fazendo um projeto que se chama Sinal de Fumaça, um monitor digital. É um site bilingue, portugues e inglês, no qual fazemos um acompanhamento da política socioambiental da Boiada desde a eleição do Bolsonaro. O site é uma linha do tempo, atualizada semanalmente, que começa em novembro de 2018 e vem com os principais eventos que marcam esse desmonte da governança socioambiental no Brasil.
No final de 2019, quando ia ter a COP do Clima, uma fundação me pediu um relatório, um documento sintético que explicasse o que aconteceu naquele ano. Eu fiz esse exercício retroativo pra montar essa linha do tempo de 2019 e fiquei chocada, é muita coisa. Li mais de 800 links, fiz um trabalho de varredura e curadoria e transformei em 100, bem parecido com o que tem hoje no site, mas mais elaborado. A fundação estava esperando que eu mandasse 3 laudas com um resumo chato do que tinha rolado, e eu mandei um negócio bonitinho, em PDF, que ela levou para gringa, voltou e falou: eu quero que você faça isso como monitoramento permanente. Aí eu criei o projeto, levei pra uma agência de comunicação com quem faço algumas parcerias há algum tempo e montei uma equipe. Tenho duas pessoas que trabalham comigo aqui e em Nova York, a gente queria organizar e sistematizar o desmonte para quem está fora do Brasil conseguir acompanhar — porque se para nós que estamos aqui é difícil, pra quem tá lá fora, na União Europeia, no governo Biden, é mais difícil ainda.
Então esse é um serviço de utilidade pública, um projeto de comunicação independente. É uma curadoria de notícias, análise e sistematização, uma interface entre jornalismo de dados e monitoramento com uma linguagem acessível. A gente criou um canal no Instagram para ligar os pontos: por exemplo, por que os caras estão fazendo isso com o Ibama? Qual é a lógica por trás? Muita gente não sabe, né? E se você ler a notícia daquele dia, não vai conseguir entender realmente o impacto.
Avalanche de absurdo
O que acontece é que você reage e eles dobram a aposta. Eu acompanho política socioambiental e de direitos humanos desde 1996, quando comecei a trabalhar no S.O.S. Mata Atlântica, então já vi vários momentos do Brasil, peguei justo o momento pós-Constituinte, vi vários tratados que o Brasil assinou, os planos de combate ao desmatamento. É muito, muito triste você ver tudo isso sendo destruído por um Congresso — porque o Bolsonaro tá lá, mas ele não opera esse desmonte sozinho. É muito cômodo para todo mundo que ele fique como único vilão, inclusive pras grandes corporações ultra poluentes, porque a gente não tem fôlego para denunciar nada além do que o fascista que está na presidência está fazendo no dia. Tem muita gente ganhando dinheiro, importância e poder com esse governo. O cara entregou tudo. Só falta agora liberar terra indígena para mineração, é o último que tá aí.
Meu trabalho como ativista é manter o senso crítico. É claro que eu me emociono, sinto raiva, choro de desespero, mas tenho que prestar atenção nas pautas e mostrar por que essas coisas estão chegando nesse ponto. Eu não posso acreditar que uma simples mudança de governo vai resolver o problema, porque não vai.
Marcha da Maconha
Sempre falo que a maconha salvou minha vida, sempre tive muita ansiedade, tinha muita insônia e a primeira vez que eu fumei um baseado, quando fiz 16 anos, dormi a noite inteira, foi maravilhoso. Era outra época, tudo muito difícil, mega criminalizado, ainda mais sendo mulher. Mas quando viajei a Amsterdam e comecei a ter contato com outros modelos, ou no Egito, que foi onde vi a planta a primeira vez e era uma coisa natural, plantada no sol do deserto, ou na Dinamarca, onde as pessoas vendiam numa igreja, comecei a ler sobre isso, a me envolver. Em 2008, quando teve a primeira edição da Marcha da Maconha, fui sozinha. Comecei a colar, conheci a galera do coletivo que organiza, tô junto desde então. Aqui em São Paulo, depois de 2011, quando o Supremo Tribunal Federal legalizou a Marcha, a gente conseguiu crescer bastante. São grupos que organizam suas próprias marchas em cada região e depois se juntam na marcha central, que acontece na Avenida Paulista. Esse ano já tem data: vai ser dia 11 de junho. A gente tá muito feliz e emocionado, porque é a primeira depois de dois anos de pandemia.
É um momento de desobediência civil coletiva mesmo, as pessoas colam pra isso. Se você quiser vir na Marcha, vai ficar de igual pra igual com todo mundo. Ao mesmo tempo, todo mundo é bem-vindo para somar e organizar seu próprio bloco. A gente sempre tem um bloco medicinal, um bloco +50…
A questão das drogas fica na mão da polícia e dos médicos, quando deveria estar na mão dos direitos civis. A gente tá falando de adultos usando substância para alterar a própria consciência e sendo punidos criminalmente. É um movimento muito importante, as pessoas acham que é coisa de doidão mas é um movimento de direitos humanos, muito interseccional, muito horizontal, muito independente.
Acho que protestar é um direito e causar problema na cidade é parte da disrupção que você precisa ter. Às vezes, greve causa transtorno, mas é o direito do trabalhador fazer greve. Todo mundo deveria apoiar bloquear o trânsito numa cidade que vive congestionada para pedir melhores condições de transporte público. Trânsito não é causado pelo protesto, trânsito é causado pelo modelo de transporte. Se a pessoa não tem uma visão política da sua relação com o meio, com o coletivo, vai olhar um protesto, qualquer que seja, e vai falar que está atrapalhando a vida dela. Além disso, o uso da força depende de quem está protestando, de como você está vestido, de onde você vem. Isso é muito errado.
2022, e o que será depois
Bom, eu espero que a gente consiga se livrar desse verme presidencial. Como ativista, o que eu estou tentando fazer é criar essa memória do que foram os anos Bolsonaro e ter uma estratégia de responsabilização dessas pessoas, jurídica e politicamente. Não podemos deixar isso barato. Acabou de ter a reforma ministerial, todo mundo concorrendo a cargo eletivo para ter imunidade parlamentar e não responder pelos crimes que cometeram.
O primeiro passo é não eleger essa galera, e o segundo é continuar pressionando, justamente pra não acontecer o que aconteceu depois da ditadura, que ninguém foi responsabilizado, nada mudou profundamente. Não basta derrotar na urna. A gente precisa focar em derrotar o Bolsonaro, com certeza, mas também estou me preparando para o futuro, no sentido de ter um documento que prova os crimes que ele e essas pessoas ligadas a ele cometeram. Eu pretendo dedicar o resto da minha vida útil a fazer essa gente ser responsabilizada de alguma forma.
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