[Paulicéia 070] Rudá K. Andrade: "Como meu avô, eu sou um homem sem profissão."
Historiador e documentarista, neto de Oswald de Andrade fala sobre sua relação com os sacys e as culturas do interior paulista
Eu não conheci Oswald de Andrade, ou mesmo sua obra, quando o célebre modernista paulista ainda era vivo, é claro. Falar com Rudá K. de Andrade talvez seja o mais perto que podemos chegar do autor do “Manifesto Antropófago”. Autoassumido "homem sem profissão", como o avô, Rudá vive a existência intensa dedicada à cultura, assim como seu pai, Rudá Andrade. Nesse centenário do Modernismo de 22 (sobre o qual falamos a fundo na entrevista com o professor da USP Luiz Armando Bagolin, em fevereiro), ele aproveita o ano para apresentar dois de seus projetos: o livro "A Arte de Devorar o Mundo", sobre a relação de Oswald com a gastronomia, e a ocupação Ocupa Sacy em São Luiz do Paraitinga, a capital brasileira dos sacys (assim, com y) que escancara uma relação afetiva e profunda com as tradições caipiras do sudeste do Brasil.
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Origens
Meu nome é tupi-guarani, o mesmo nome que meu avô colocou no meu pai. Meu avô colocou o nome Rudá Poronominare no meu pai, e esse Poronominare parece que se refere a outra entidade, mais Macunaíma, mais malandra, são heróis da mitologia tupi-guarani. O K no meio é o lado polonês da minha mãe: Kotsubey, que aqui no Brasil virou Kokobege.
Como meu avô, eu sou um homem sem profissão. A minha formação é em História, trabalho com pesquisas com um pé no audiovisual. E no audiovisual você faz os roteiros, filma, edita, é uma coisa meio autodidata, o que você não sabe, aprende a fazer e realiza – como meu avô, que também era jornalista, escritor, advogado, e foi fazendeiro. Ele foi de tudo um pouco e na verdade não é nada, me encaixo um pouco nesse sentido. Sou pesquisador, curador, fotógrafo, editor, escritor e um homem sem profissão.
Meu pai também era um homem sem profissão. Ele estudou e trabalhou com cinema, foi assistente de direção do Vittorio De Sica na Itália, no começo dos anos 1950, fez carreira lá, ficou noivo da filha de um dos maiores poetas da época, o Ungaretti, que foi amigo do meu avô também. Mas aí ele saiu de lá e veio pro Brasil, para cuidar da Cinemateca Brasileira. Meu pai deu a vida pra Cinemateca, ajudou a formar acervo, criou um curso de cinema na ECA na década de 1970, o MIS em São Paulo, criou o formato das Oficinas Culturais Oswald de Andrade. Foi um cara da cultura.
Existe um peso de ser filho e neto deles. Mas é natural. Todo mundo tem os seus pesos, vai administrando. Eu acho que administrei bem até aqui. No interior de Minas Gerais, onde morei, ninguém sabe quem é Oswald de Andrade. Então fui me encontrar, saí fora e voltei. Mas tem esse sentido que eu falei de contribuição, acho que eu tô com um trabalho que dialoga com o trabalho deles, fico feliz com isso.
Documentarista
Eu tenho uma série de documentários com foco nos saberes tradicionais do interior, popular caipira. O primeiro de todos é meio que um clássico cult, chamado "Somos Todos Sacys". Depois disso eu me mudei pro interior de Minas Gerais, um povoadinho chamado Milho Verde, perto de Diamantina. Morei lá dois anos. Me aproximei, conheci as pessoas, me interessava pelo modo de vida, pela cultura, culinária, história, geografia, cachoeira, amigos, conversas, pessoas, relações. Me aproximei de um ponto de cultura de lá e fiz oficinas de audiovisual e de literatura, interagindo com essa comunidade, fazendo meus documentários, uma série chamada “Saberes tradicionais do Milho Verde”. E quando olhei, percebi que ali tinha uma pesquisa que resolvi sistematizar num mestrado de História. Depois, em 2017, fiz uma série de filmes via PROAC, um projeto maior, de pesquisa histórica no Vale do Jequitinhonha. Foi um projeto lindo percorrer o vale buscando esses saberes dispersos em quatro eixos: comer, morar, brincar e criar. Isso me trouxe um repertório de documentários sobre os saberes tradicionais que são muito presentes nos interiores aqui do sudeste, de São Paulo e Minas, com as suas especificidades.
"A Arte de Devorar o Mundo"
Tem uma série de trabalhos que fui fazendo sem me dar conta de que estava trabalhando de fato com a culinária. Em 2013, defendi minha dissertação de mestrado sobre histórias e memórias do vale do Jequitinhonha a partir da produção do fubá, portanto do ciclo do milho e da agricultura. Procurei articular historicamente e me debrucei pela primeira vez com mais seriedade na culinária, pensando a partir da história social. E fui fazendo esses outros documentários, cada vez me aproximando mais da culinária, que é uma coisa que desde pequeno fui ensinado a gostar, a prestar atenção, a apreciar experiências diferentes, ampliar o repertório. Isso é uma coisa que veio da minha infância. Aí teve uma oportunidade de um edital do Proac voltado para textos debatendo a Semana de 1922, e entrei com um projeto, junto com minha companheira, Tarsila Portella. Ela organizou, fez a capa, a direção de arte das fotos. Eu fazia a comida, mas a direção é dela, que entre outras coisas é artista plástica. É uma forma de pensar mais seriamente nos significados da culinária a partir da literatura e experiências históricas do meu avô — e da minha imaginação também, não existe história sem imaginação. O livro tá no site. São só 400 exemplares, com capa dura, é um livro para frequentar a sua cama, mas que também pode chegar na cozinha, abrir, consultar uma receita, é um híbrido de literatura e culinária.
São Luiz do Paraitinga e os Sacys
A Ocupa Sacy, em São Luiz do Paraitinga [ne: cidade do interior paulista famosa pelas festas e pela preservação da cultura caipira], é uma coisa muito gratificante. É todo um amadurecimento da sociologia moderna. A gente foi a campo e montamos estudos de arqueologia em lugares em que pudéssemos encontrar coisas, geralmente debaixo de bambuzais. Numa dessas escavações, começamos a encontrar esses artefatos mágicos, primeiro uma caixa cheia de garrafas, muitas garrafas. Aí a gente olha assim, as garrafas todas fechadas, com cara de estar há 100 anos lá enterradas debaixo do bambuzal, todas rotuladas com nomes de sacys, datas e locais. Aí encontramos esse grande livro, o “Fabuloso Inventário dos 77 Sacys Livres", um livrão muito grande que tá exposto na ocupação em São Luiz, pra todo mundo ver que não é mentira. A partir daú a gente descobre que há uma diversidade enorme de sacys, muito mais do que a gente imagina. Quando eu tava fazendo o documentário, queria encaixar todos os sacys num sacy que eu tinha na cabeça, queria encontrar uma imagem de sacy e colocar tudo ali. Só que não é assim. Seu sacy é diferente do meu, a diversidade é posta, é um fato, é clara.
Buscamos outros caminhos porque trabalhamos com a matéria da brincadeira, da oralidade, e a oralidade não pode ficar presa no passado, tem que estar conversando com o hoje, e o hoje tem suas questões sensíveis. Nesse sentido a gente busca outras leituras. Há uma leitura racial muito forte no Lobato, e procuramos dar outras formas pro sacy, trazer as qualidades que acreditamos que são importantes hoje.
Dentro do sacy, há uma semente. Há um lado, uma dimensão que é opressora, colonialista, colonizadora, que participa desse projeto de morte no qual a gente vive ainda hoje. Mas o outro lado é um lado de que a gente também aprende dentro da história dos sacys, um lado de resistência, de celebrar a vida, de brincadeira, de jogo, de proteção das matas, ecologia, afeto. A cultura caipira nos ensina a solidariedade, a comunhão, a troca, a imaginação, a brincadeira, a festa e a disciplina de cuidar da vida, dos bichos, da roça, da cozinha. Então a gente busca, dentro da OcupaSacy, ser um espaço de reflexão e memória.
Semana de 22
A grande pergunta do modernismo é "quem somos". É essa pergunta que fica batendo na nossa cabeça. Uma pergunta que nossos hermanos latinoamericanos se aprofundaram talvez muito mais, com mais propriedade. O que é ser latinoamericano, o que isso quer dizer para o baile do mundo das outras nações, desse universo em geral eurocêntrico? Essa era a pergunta dos modernistas, quem é esse brasileiro, como a gente pode contribuir pro mundo? Esse "o que é o Brasil?" guiou os modernistas, guiou meu pai e acho que guia muita gente, inclusive a mim.
A celebração da Semana de 22 é importante. A gente tem que buscar as coisas interessantes, já que nem tudo interessa, né? Acho que um pouco dela dialoga com nossas questões de hoje, mas temos uma porção de questões complicadas que na época não foram pensadas ou enfrentadas ou encaradas de frente. Foi um grupo pequeno. Faltava diversidade, rolava apropriação. Mas há coisas fabulosas também, como o incentivo e a importância à pesquisa de linguagem, que é uma coisa das correntes modernistas, de fora da caixinha, buscar, pesquisar, criar, abrir, ver com olhos livres, mexer, buscar e encontrar coisas novas.
📚 Onde encontrar o Rudá K. Andrade
Livro "A Arte de Devorar o Mundo"
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quanta síntese no relato do Rudá. não conhecia o trabalho dele e agora já quero ler e ver tudo