[Paulicéia 069] SP Antiga e a briga para tornar a acessível a história de São Paulo
O casal Douglas e Heloísa fala sobre a construção de seu acervo sobre a história da cidade
Quem passa pela Rua Cachoeira, no bairro do Catumbi, divisa do Brás com o Belenzinho, ao lado da Vila Maria Zélia, talvez nem repare em um sobrado reformado com calçada de piso paulista e uma placa histórica na frente. Mas por trás da parede verde, muito bem guardado, está um precioso acervo histórico do desenvolvimento da cidade de São Paulo. Ali funciona a sede do Instituto São Paulo Antiga, projeto que começou como acervo de curiosidades do casal Douglas e Heloísa, se tornou um site e uma comunidade com mais de 150 mil pessoas no Facebook, e hoje espera a pandemia arrefecer para cumprir a vocação de guiar as pessoas através das transformações da cidade do século 18 pra cá.
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O site
Sempre gostei da história de São Paulo. A partir do momento em que criei o São Paulo Antiga, passei a perceber muitas deficiências em como contar a história da cidade. Não tem mais história de São Paulo nas universidades, você tem que fazer pós-graduação e acaba dependendo de acervos particulares, o meu, o Moreira Salles, o Itaú Cultural. As próprias universidades estatais de São Paulo, como a USP, não compram mais esses acervos. Então, quando montei o São Paulo Antiga, em janeiro de 2009, não existia nenhum site sobre São Paulo na internet. Surgiu com o objetivo de contar a história das casas, tanto que no início chamava São Paulo Abandonada, porque só falava de casas abandonadas ou demolidas. O jornalista e escritor Marcelo Duarte foi o primeiro cara que notou o São Paulo Antiga e me entrevistou para o (hoje extinto) Jornal da Tarde. Ele falou 'Douglas, seu trabalho é incrível, tem muito potencial, mas o seu nome é terrível, você nunca vai ter alguém interessado em apoiar, pensa nisso'.
Eu sempre trabalhei com internet, fazendo programação, site, essas coisas, sempre fui rato de internet, de pegar domínio, registrar e vender. Então o nome São Paulo Antiga eu já tinha registrado. Esperei chegar no dia 01 de setembro de 2010, que era o Centenário do Corinthians e eu tinha um material inédito: tenho no arquivo o projeto original do estádio do Corinthians, que não é esse que foi feito, foi o que o Vicente Matheus apresentou que o presidente Geisel em 1977. Esse material nunca tinha sido publicado. Então preparei e mudei o visual e o nome do site, estreei com essa matéria em destaque, mandei pro Marcelo Duarte e pro Juca Kfouri, com quem eu já conversava, e os dois divulgaram. Em um dia teve mais acesso do que no ano inteiro. E o site nunca parou de crescer.
Percebi que o site crescia por dois motivos: primeiro que eu faço um trabalho bem feito, não vou mentir, e segundo porque não existia nada assim na internet. Logo surgiu a função de grupos do Facebook, criei uma página que hoje tem 160 mil seguidores, mais o Instagram, que está com 118 mil. Tem também o YouTube, onde tô investindo mais agora, estamos começando a ter bastante views. A ideia é fazer vídeos sobre a história e curiosidades de São Paulo, que é o que dá audiência, como o vídeo do Dadinho, que bombou muito.
O Instituto
Douglas – Aqui era uma casinha muito simples. A minha bisavó tinha uma quitanda dois quarteirões para baixo e a prefeitura desapropriou aquela região ali para fazer uma praça, fazer acesso na época que estava retificando o Rio Tietê. Eles saíram de lá, minha avó juntou um dinheirinho que recebeu da indenização, juntou com um dinheiro que meu avô tinha e compraram essa casa e o terreno vizinho. Assim foi feito um imóvel duplo. Em 1947, aqui embaixo, onde hoje é a cozinha, era o comércio e em cima era a residência. Depois que minha bisavó morreu, eles passaram a alugar a parte de baixo. Mais tarde, meu avô começou a ficar ruim da perna, e passou a morar aqui embaixo. Moraram aqui até 1980, quando meu avô foi morar comigo e com os meus pais. Daí em diante, aqui ficou alugado. Mas casa alugada aqui você não consegue alugar para pessoas de poder aquisitivo, esse é um bairro simples. Então, quando foi 2018 e nós começamos a pensar em transformar o site num Instituto, precisávamos de um lugar para guardar os livros, os equipamentos, tudo. Até que conversamos e identificamos dois caminhos: ou profissionaliza ou fecha. Não tem outra saída.
Foi a Heloisa que falou: 'vamos tentar abrir um lugar pro público'. Aí que a gente começou a correr atrás, transformar numa Oscip, mas não tínhamos pensado em transformar aqui na sede, a princípio ia ser ali na Barão de Itapetininga, no prédio onde era a Livraria Francesa. Só que o Centro já tem um monte de mecanismo cultural, né? Vou ser mais um. Decidimos encerrar os contratos com os inquilinos e fazer aqui. Só que tava caindo aos pedaços, tava horrível. No site tem um antes e depois, dá pra ver que tudo foi feito do zero, tudo novo. Aqui é o berço da minha família.
Meus pais se conheceram na fábrica Vigor (que fica do outro lado da rua, literalmente) e eu nasci no Hospital São José do Belém. Na porta tem uma placa, que é uma forma de homenageá-los. Porque isso aqui vai ficar para a posteridade.
A cozinha da Helô
Heloisa – A cozinha do São Paulo Antiga apareceu junto com a ideia de ter um espaço físico. Eu já estava começando a olhar livros antigos e a me interessar pela questão histórica da gastronomia de São Paulo, e fui fazer um curso prático de cozinha, porque só tinha experiência em cozinha doméstica, queria ver como era o lado prático de cozinha profissional. E aí começou: poxa, quero um forno grande mas em casa não cabe, quero uma mesa grande, onde que eu vou fazer macarrão? Tem um monte de gato em casa. Aí o Douglas que sugeriu fazer a cozinha aqui no andar de baixo do sobradinho, e a gente colocou a cozinha no projeto. A ideia não é ensinar a cozinhar, seguir receita, nada assim. É explicar a sociedade através da comida. Por exemplo, tenho livros muito bons de jornalistas rurais que contam a história do leite em São Paulo. A história da manteiga, a história dos queijos da Mantiqueira… Então a gente junta o lado histórico da cidade e conta a evolução dessa sociedade através dos produtos alimentícios.
A cozinha ficou pronta em agosto do ano passado. Por causa da pandemia a gente foi protelando, mas tenho um milhão de projetos. Meu assunto de TCC é o sorvete, porque no sorvete encontrei um autor húngaro que conduziu um trabalho universitário colaborativo, um livro de 600 páginas, lindo, que foi traduzido pro inglês, em que ele derruba vários mitos sobre a história do sorvete. Para contar a história do sorvete eu passo pela história da porcelana chinesa, da porcelana inglesa, pelos reis, porque só eles podiam fazer sorvete, inclusive. Tô procurando uma artesã ceramista para reproduzir essas cerâmicas, nas oficinas a gente vai contar a história e na reserva técnica do Instituto temos alguns desses elementos que são manuseáveis.
Eu quero que a pessoa tenha a oportunidade de chegar perto dessa história, que possa manusear, porque isso é diferente de ir no museu e contemplar. Serão vivências.
A gente tem batedor de manteiga, tem que ficar lá girando. O meu pai costuma falar que somos caipira da cidade, né? Por incrível que pareça tem gente que não sabe que frango é um animal, porque ele tá descaracterizado como animal. Eu quero tentar resgatar essas coisas, aproximar as pessoas das origem dos alimentos, sempre dentro de um contexto histórico. Outra oficina que idealizei é a do café. A gente sabe que São Paulo cresceu no grão de café, mas eu tenho uma coleção de cafeteiras desde os anos 1930, então contamos a história de São Paulo passando por diferentes equipamentos de fazer café que foram usados na cidade. E aí as pessoas vão experimentando, fazendo, manuseando.
Biblioteca
Douglas – Nós dividimos a biblioteca em temas. Tem história do Brasil e Guerra do Paraguai, que é um dos objetivos da minha coleção – são poucos livros, mas muitos raros, que mostram a guerra sob o ponto de vista brasileiro, paraguaio e argentino, um diferente do outro. O acervo de São Paulo, que é o maior, tem muitas raridades, alguns são exemplares únicos no Brasil, tudo fruto do meu garimpo da história de São Paulo que começou por volta de 2002. Também temos a parte de gastronomia, que a Heloísa vem montando desde 2019, com muitas raridades, como livros do século 17 e 18 sobre gastronomia portuguesa e brasileira. Temos a biblioteca de livros eróticos e pornográficos, que é outra coleção, e o acervo criminal, o maior acervo particular nesse tema do Brasil. Esses livros eram todos de um delegado de polícia famoso de São Paulo, o Milton Bednarski, que foi o delegado e policial com mais prisões na carreira. Ele prendeu os famosos Bandido da Luz Vermelha, Chico Picadinho, Meneghetti. Quando ele morreu, em 2017, o acervo ia todo pro lixo. A família me ligou oferecendo e corri às pressas, eu não tinha dinheiro na época, tive que vender meu carro para comprar. São todos os crimes que abalaram São Paulo no século 20, muitos desconhecidos e outros bem famosos, como o Crime da Galeria do Cristal, do Restaurante Chinês, do Castelinho da Rua Apa, do Poço e, claro, o Crime da Mala, que era o que ele mais gostava. É um acervo que ele foi garimpando ao longo da vida, com processos, investigações, fotos dos crimes, fotos das armas. Eu não podia deixar isso se perder, porque não tem cópia. Quero digitalizar esse acervo e outras raridades, que não posso deixar que as pessoas manuseiem.
Tem também os catálogos telefônicos e de endereços. Como é que eu conto as histórias das casas no São Paulo Antiga? Eu preciso saber de onde veio. Isso aqui, por exemplo, é "O Livro Vermelho dos Telefones". Sem isso, o trabalho do São Paulo Antiga não sai. É fundamental para o meu trabalho. E lista telefônica tem um problema, né, ninguém guardava. Chegava nova, jogava fora. Hoje esses livros valem pequenas fortunas, principalmente as de 1937 e 38, que não têm só telefones, elas começam com propagandas antigas, e primeiro trazem nomes mais representativos, ou seja, o nome das grandes pessoas e famílias de São Paulo, e depois, na segunda parte, os números de telefone, que na época vinham em ordem de número. Daí tem a terceira parte, dividida por profissões. E depois tem o índice de ruas. Então você achava todo mundo, de qualquer forma. Mas não acabou! Ainda tem uma seção de caixas postais e, enfim, a parte mais rica: "O Livro Vermelho dos Automóveis", onde estão listados todos os carros que existiam em São Paulo em 1937 e 38. Quem tinha a placa de número 01? Tá aqui: Cadillac, Conde Francisco Matarazzo, Avenida Paulista, 83.
Temos muitos livros raros que não existem em outros lugares, que permitem que as pessoas façam pesquisas sobre São Paulo. Tirando o acervo da Biblioteca Mário de Andrade, não existe outro acervo assim. Mas lá é muito difícil conseguir acesso aos livros raros.
Minha ideia agora é entrar numa lei de fomento para digitalizar esse acervo, porque essa é uma briga minha, eu acredito que essas coisas têm que ser acessíveis.
🏘️ Onde encontrar o São Paulo Antiga
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Eles descrevendo o acervo histórico eu desfalecendo, porque é muito ouro para pesquisa ♥️
Adorei o post. Acredito que depois do grupo de São Paulo. O modelo se espalhou pelo Brasil (acompanho muito o daqui de Cuiabá e sigo o do Espirito Santo para ter assunto com o lado capixaba da família). O perfil Comida na História foi uma grata surpresa.