[Paulicéia 001] Oz Guarani: "O rap é nossa luta para mostrar e falar a verdade"
A mensagem do hip hop paulistano da Terra Indígena do Jaraguá.
Essa é a primeira edição da Paulicéia, boletim bissemanal sobre a cultura em São Paulo durante a pandemia. A fala da estreia não é minha, mas dos MCs Mirindju Mano Glowers e Jeferson Xondaro, os Oz Guarani, que usam a construção típica do rap paulistano para falar da luta dos povos originários no Brasil.
Existe uma máxima em São Paulo que diz que ninguém é realmente daqui. Todo mundo em São Paulo veio de algum outro lugar. Exceto os indígenas, que já viviam aqui antes dos jesuítas pensarem em montar acampamento acima da Serra do Mar.
Hoje, o estado de São Paulo tem 31 Terras Indígenas. Dados do IBGE de 20101 apontam a capital do estado como a quarta cidade com mais indígenas no país, com pouco mais de 13 mil indivíduos. Desses, cerca 5002 são da etnia guarani mbya, e vivem na Terra Indígena do Jaraguá, zona norte da cidade.
Se você acompanhou um pouco do noticiário recente, a chance é que viu os guanari mbya fechando a Rodovia dos Bandeirantes, na última sexta-feira, em protesto contra o Projeto de Lei 490, que prevê, entre outros retrocessos, o estabelecimento de um marco temporal para demarcação de terras indígenas. O projeto, que é considerado inconstitucional por juristas, terá votação de recurso extraordinário no STF no dia 30 de junho. Não é exagero dizer que PL490 pode significar o fim dos povos originários do território brasileiro. No meio disso, os guarani do Jaraguá estão correndo o risco de ficar sem as poucas terras que ocupam hoje, esmagados entre duas rodovias de acesso à capital.
É essa urgência dos povos originários que serve como força por trás da dupla Oz Guarani, na ativa desde 2015.
Os MCs Mirindjú Mano Glowers e Jeferson Xondaro usam o idioma guarani mbya misturado ao português para rimar na construção típica do hip hop paulistano, com batidas secas, letras combativas e a introspecção enfezada daqueles para quem existir é um ato de resistência ininterrupto.
Eu visitei a Tekoa Itapuké3, uma das seis aldeias da Terra Indígena Jaraguá, no começo de junho. Quem me recebeu no centro da Tekoa Itakupe, uma das aldeias da Terra Indígena do Jaraguá, numa tarde gelada de domingo no começo de junho, foi Mirindjú, junto com a esposa Cacau e o filho pequeno. A primeira coisa que notei (e não sabia) é que português não é a língua oficial ali, dentro da cidade de São Paulo, a trinta quilômetros da Praça da Sé. A primeira língua, usada em todos os momentos, é o guarani mbya — a mais forte manifestação de um povo essencialmente oral.
Aqui Nhanderu domina a gente, mas nossos parentes estão enfrentando fazendeiros invadindo nossas aldeias e matando nossas lideranças. A minha letra de rap é pra fazer a pessoa sentir o que está acontecendo de verdade no mundo.
E eles têm muito a dizer. Tanto que não me deixaram falar durante a uma hora de papo combinada e cumprida à risca. Eu queria perguntar como Mirindju e Xondaro descobriram o rap, há quanto tempo moram na Tekoa Itakupe, como a comunidade indígena recebe o rap, como o rap paulista recebe os indígenas. Mas eles não queriam falar sobre isso. Cheguei na Tekoa um dia após o infame passeio do presidente Bolsonaro e seus apoiadores motociclistas pela Rodovia dos Bandeirantes, um dos limites da Terra Indígena do Jaraguá. Não tinha como a conversa ser sobre rap. A música é um veículo atualizado para a mensagem que eles vêm tentando espalhar há séculos: sem os povos originais não há futuro. Nem em São Paulo, nem em lugar algum.
Mirindju: Nosso foco é a luta pela demarcação de terras indígenas. Nosso rap tem o objetivo de levar nossa luta, mostrar e falar a verdade. Dentro da arte a gente denuncia as coisas que a população não-indígena vem fazendo, as invasões nos territórios indígenas, os ataques. A gente não precisava estar passando por isso, mas infelizmente é o que está acontecendo, é essa a realidade, o sistema atacando. Os governos não querem saber. Todo o povo está abandonado.
Xondaro: A nossa luta começou em 2014, durante uma reintegração de posse. Desde então a gente pensou em uma forma de levar nossa mensagem pro mundo, e o hip hop estava ao nosso alcance. O hip hop sempre fez parte da nossa vida, desde criança nós sempre gostamos de rap. Eu mesmo não me identifico com outras músicas. O hip hop pra gente é uma forma de expressar, levar nossa mensagem pra fora. É uma missão. O rap não é brincadeira. A gente tá representando nosso povo, nossa família, nossas crianças, nossa futura geração. Aqui Nhanderu domina a gente, mas nossos parentes, muitos da nossa família estão lá, enfrentando fazendeiros invadindo nossas aldeias, matando nossas lideranças. A minha letra de rap não é pra fazer moda, não é pra alguém dançar, a minha letra de rap é pra pensar, é pra revolucionar. É pra fazer a pessoa sentir o que está acontecendo de verdade no mundo. Eu tenho dois filhos, eles ficam felizes quando veem o Glower, eles falam: eu vi na TV, ele canta rap! Então pra gente é uma conquista. O nosso povo precisa de mais voz. Infelizmente a nossa sociedade não permite que o indígena fale, então o rap vem com a missão de levar essa mensagem pro mundo lá fora.
Sem a Terra ninguém vai viver. Se os indígenas sumirem, ninguém vai viver aqui. Nossa permanência depende da natureza.
Mirindju: A gente fala, fala, fala. Tanto as lideranças, como as outras pessoas não-indígenas que lutam pelos seus direitos, nós falamos. Sabemos que todos que falam estão cansados. Mas eles [NE: os invasores de terras] não querem compreender que as coisas naturais têm vida. Não querem entender. A visão deles é natureza como lucro. Vão deixando as famílias na precariedade. A gente conta com os apoiadores também, dos não-indígenas que nos apoiam, a nossa causa, que admira nossa tradição e cultura, que ajuda mesmo, que soma com a gente. Ainda bem que tem outro lado das pessoas não-indígenas, que ajudam mesmo a gente, que falam a favor de nós. Eu fico feliz de presenciar do lado dessas pessoas, porque assim vou percebendo pessoas não-indígenas com um bom coração, que foram enganadas através dos livros que não conhecem a existência de indígenas que estão protegendo a cultura e a Terra. Porque, com certeza, sem a Terra ninguém vai viver. Se os indígenas sumirem, ninguém vai viver aqui. Nossa permanência depende da natureza. Mas mesmo assim, com o tempo a gente vai se fortalecendo, conhecendo as dificuldades que passou, se conhecendo. Vamos estar sempre preparados com a cabeça erguida. Não importa se vai acontecer algo pior, vamos estar sempre preparados. A gente não vai abaixar a cabeça. Se a população não gosta da gente, tanto faz, a gente continua a luta.
Estamos sofrendo um sério risco, o marco temporal vai tirar nossas terras. Se isso for aprovado eles vão começar a explorar as terras indígenas, eles vão tirar a gente das nossas terras. E a nossa liberdade? E as nossas crianças? E a nossa cultura?
Xondaro: Estamos há mais de 500 anos resistindo. Nossas crianças mantêm a língua, fortalecem nossa cultura, fazem os cantos, a reza. Por mais que aconteça de tudo que há de pior, se for ataque do juruá [NE: não-indígena, homem branco] o guarani está preparado. Ataque do juruá sempre teve. Se o indígena não estivesse preparado, já teria sido exterminado. Como nossos parentes. Vocês exterminaram nossos parentes. Hoje a nossa língua é falada por pouco mais de mil pessoas. Antigamente eram mais de três milhões, vários povos. O que restou está aqui lutando. A nossa luta é pela humanidade, é pela proteção da Mãe Natureza. Porque não adianta lutar pela demarcação de terra sem respeitar a terra. A gente vai acabar do mesmo jeito. Não adianta eu ficar famoso, não adianta eu ter muito dinheiro e pensar só em mim. Depois pensar em cavar um buraco na terra. Isso é desrespeito. Então a nossa cultura é preservada, a nossa cultura é a voz de Nhanderu, porque se a gente não levantar essa bandeira nem vocês vão estar mais aqui. A minha mensagem para todos os brasileiros: a luta é de todos nós. A luta é uma só. O Oz Guarani é isso. Se meu povo vier falar aqui é uma coisa que não acaba nunca, porque essa história começou antes da sua história, antes de você chegar no meu país isso já existia. A única coisa que eu vou deixar firme é a voz de Tupã, é a voz de Nhanderu, é a voz de Xondaro. Tudo que vier estaremos preparados como sempre estivemos. Infelizmente, nós não sabemos o amanhã, o que pode acontecer. Estamos sofrendo um sério risco, o marco temporal vai tirar nossas terras. Se isso for aprovado eles vão começar a explorar as terras indígenas, eles vão tirar a gente das nossas terras. E a nossa liberdade? E as crianças? E a nossa cultura?
Eu não acredito mais em nada. Mas meu povo acredita. Eles carregam uma esperança. Hoje, a gente carrega uma nova bandeira: a bandeira de socorro.
“Resistência Nativa” é o vídeo mais recente do Oz Guarani, feat com Brô MCs e MC Kunumi.
#JaraguáÉGuarani
O próximo Paulicéia continua na temática indígena e será enviado na quarta-feira, com atualização sobre a votação do PL490 no STF e a repercussão dos protestos da comunidade guarani mbya em São Paulo. Assine e compartilhe.
Expediente
Por Gaía Passarelli
com Substack Local
Foto Oz Guarani: Luisa Oguime
Direção de arte: Milo Araújo
Transcrição: Camila Mazzini
Edição de texto: Mateus Baldi
Logotipo inspirado no Piso Paulista de Mirthes Bernardes.
Muito bom. Sou seu fã, leio tudo que vc escreve nas redes sociais. Moro em Braga, Portugal. Só uma dúvida na linha abaixo:
Não é exagero dizer que PL490 pode o fim dos povos originários do território brasileiro.
Esta correto "pode"?
Sucesso.
Belo começo. Atual, inclusivo e altamente importante. Sempre bom lembrar que fora do nosso umbigo existe vida, cultura, povos e diversos mundos.