[Paulicéia 003] Diaspora.Black e o turismo em São Paulo
Como desenvolver uma tecnologia que permita dar visibilidade aos legados da cultura negra – em São Paulo, mas não só.
Paulicéia é um boletim bissemanal sobre a cultura em São Paulo durante a pandemia. Na semana passada, falamos com dois jovens guarani da Terra Indígena do Jaraguá, zona oeste da capital, sobre o momento urgente de luta dos povos originários no Brasil. E nessa semana o assunto é a Diaspora.Black, hub de conhecimento afrocentrado com sede no centro de São Paulo.
A Diaspora.Black nasceu da explosão do turismo na última década. Em 2016, Carlos Humberto Silva, Antônio Luz e Gabriel Oliveira, motivados por suas experiências em plataformas tipo AirBnb, começaram a pensar um modelo de experiência de viagem acolhedora, que permitisse aproximação com a história, legado e representação de pessoas negras.
Hoje, a empresa é uma startup de impacto social focada na valorização da cultura negra e promoção da igualdade racial. A Diaspora.Black tem dez funcionários, é integrante do programa Google Black Founders Fund, e conseguiu se adaptar aos desafios do turismo em tempos pandêmicos.
Quem falou comigo sobre esse processo e os planos para a retomada do turismo presencial foi a Adriana Melo, carioca de 34 anos, que se uniu ao time há quatro meses como líder de marketing, e o Antônio Luz, 34, um dos fundadores.
A Diaspora.Blackcomeçou como uma empresa focada em hospedagem e turismo, certo? Como foi?
Antônio - Como ideia, começou em 2016. Eu, o Carlos Humberto e alguns parceiros, ainda no Rio, começamos a nos reunir pensando o que caberia dentro da empresa. Queríamos desenvolver uma tecnologia que desse visibilidade aos legados da cultura negra. Partiu muito da questão do acolhimento dentro de casa, de você poder receber as pessoas em deslocamentos e viagens, sem incômodo, desconforto ou insegurança. Porque esse desconforto aconteceu conosco muitas vezes. Foi um gatilho. Precisávamos de uma plataforma de hospedagem compartilhada sem passar por situações de constrangimento e discriminação. Então essa foi a motivação. Mas a gente já visualizava que a Diaspora.Black seria mais que hospedagem, seria uma conexão com territórios mesmo. Uma conexão que vem da história.
Antonio: A conexão vem de conhecer marcos, espaços culturais, centros, espaços de memórias que representem nosso legado.
Quando começamos, algumas cidades diziam "ah, mas aqui não tem esses territórios, não tem essas referências". Daí a gente começava a pesquisar e via que existiam, sim, roteiros específicos, centros de cultura fazendo um trabalho de reconhecimento dos espaços. Faltava maior visibilidade. Poxa, se eu tô indo para o Maranhão, o que posso encontrar lá? Sei que tem o Tambor de Mina, mas onde encontro isso? Qual é o espaço de referência? Nossa proposta é conectar esses pontos.
Em 2021 a Diaspora.Black deixou de ser "só" um hub de afroturismo para se tornar uma plataforma de conhecimento afro. Essa mudança já estava prevista ou foi consequência da pandemia?
Antônio - Nós já tínhamos a intenção de agregar serviços, outras formas de conexão para além de hospedagem, como os passeios, os roteiros completos de viagem. Em janeiro de 2020 fizemos um piloto vendendo ingressos do ensaio do Olodum em Salvador. A direção era no sentido de agregar experiências dentro da plataforma, fazer uma curadoria para que a pessoa pudesse se encontrar em cada cidade. E a pandemia mudou drasticamente esse plano. Vimos a necessidade de levar para o online a curadoria sobre temas que podem ser importantes para a população, para a comunidade. Procuramos quem já estava fazendo bons conteúdos, entendemos quais são os temas que interessam para a comunidade. E aí foi muito bacana, a receptividade foi imensa, as pessoas aderiram muito à proposta. Muita gente já seguia, já acompanhava nosso trabalho, mas tinha muita gente de outros lugares que não conseguia acessar. Passamos a ter muitos acessos dos cursos em outros países, em outros estados. Em Manaus, Roraima, Belém, territórios onde antes a Diaspora.Black não tinha muita presença.
Como aconteceu essa virada de 2020 para 2021? Como a Diaspora.Black fez para se adaptar e ir além do turismo presencial?
Adriana - Quando a pandemia chegou, todos os contratos de viagens, de hóspedes e anfitriões, foram cancelados. A Diaspora.Black precisou se reinventar mesmo. Foi preciso falar com cada fornecedor, com cada cliente para tentar manter o serviço em outro momento. Muitas decisões foram tomadas internamente, como a criação de pacotes com reserva válida para o futuro. Isso, e os cursos online. A Diaspora.Black é uma empresa de turismo afrocentrado. Com o tempo e a criação de cursos de letramento empresarial, a Diaspora.Black deixa de ser turismo e passa a ser uma empresa que quer quebrar o preconceito racial. Isso aconteceu de forma muito orgânica: a Diaspora.Black se tornou um hub de conhecimento afrocentrado. Então a gente não fala só sobre afroturismo, fala também sobre mulherismo africana, sobre autores negros brasileiros. Temos grandes nomes presentes na plataforma: a Renato Noguera, o Tom Farias, a Angélica Ferrarez, a Helena Teodoro, que foi a primeira doutora negra brasileira.
Adriana: O afroturismo é o coração da Diaspora.Black. Essa é uma empresa que está contando a história de pessoas negras.
Afroturismo é conhecer pessoas e lugares. Ir a Palmares para conhecer a história que compôs o nosso país. E não só pessoas negras. É muito importante ter pessoas negras, claro, mas também é importante que pessoas não-negras possam, através da história de pessoas negras, conhecer a história do Brasil. Somos 54% da população e um grande alicerce da história do país. Quando você pega a “Enciclopédia Negra”, aquele montão de nomes e coisas que essas pessoas fizeram, você vê que não pode colocar a história da cultura negra como um adendo. A Diaspora.Black vem para tomar esse protagonismo, é a gente vai contar a história da gente. Os afroempreendedores que estão vendendo produtos que falam da nossa história. O nosso propósito é conhecimento afrocentrado, é contar essa história.
Quanto do público brasileiro de vocês é de São Paulo?
Antônio - São Paulo, o estado e a capital, é o território mais presente em nossa base, tanto de navegação e acesso quanto de inscrição mesmo. Porque é onde tem mais referências e onde o debate está mais maduro. A economia em São Paulo talvez tenha sentido menos o efeito da pandemia do que outros estados e cidades. O tour mais procurado é a Caminhada São Paulo Negra, da Black Bird, que desenhou a curadoria dos espaços e dos roteiros e fala da história da população negra de São Paulo.
Antônio: Os próprios paulistanos reverenciam a cidade pela diversidade imigrante, mas muitas vezes não conhecem as grandes referências da cultura negra que estão em São Paulo.
São Paulo consome muita cultura, mas ainda não se conectou com a história de sua população negra. E não falo só do centro, que é onde está a Caminhada, mas da gastronomia, da religiosidade que está presente nos bairros. O Jabaquara, por exemplo, tem um centro de cultura afroreligiosa muito forte, ligado a uma casa de matriz africana que cresceu como centro cultural, com sede própria, uma história de muitos anos de trabalho dedicado e muita riqueza. O Mestre Ananias, no Bixiga, construiu com a capoeira uma referência que hoje talvez a gente não conheça. Por isso é muito importante o processo da Caminhada, é uma ação de vários atores que gerou conhecimento de espaços como o antigo Pelourinho, as primeiras rodas de samba na Barra Funda... Reconhecer esses espaços é importante para a memória da cidade.
Como funcionam as tours que a Diaspora.Black oferece?
Adriana - Nós não participamos diretamente do tour. O que a gente faz é ser um hub. A partir da Diaspora.Black as pessoas vão encontrar guias e tours, como a Rota da Liberdade, uma experiência premiada que está conosco desde o início. Nosso negócio é ser o agregador, anunciar, vender, criar conexões para os pacotes e os cursos. Hoje, por uma questão de responsabilidade, preferimos não comunicar tanto as tours quanto os cursos, por exemplo. Mas temos alguns pacotes ativos: Palmares em novembro, Alter do Chão em dezembro. A expectativa é que o afroturismo volte no segundo semestre. Então, a partir de julho a gente vai voltar a falar sobre turismo, considerando os cuidados e valorizando experiências que são pequenas e ao ar livre.
Adriana: O turismo está voltando e o afroturismo vem como consequência. Com a população vacinada, o turismo doméstico vai ficar muito forte.
Quais são os planos para 2022, já num contexto de pós-pandemia?
Adriana - Quando se fala de ESG [NE: sigla para Enviromental, Social, Governance, ou práticas de responsabilidade em relação a ambiente, social e governança dentro do mundo corporativo], a Diaspora.Black tem que estar lá na frente, ser uma autoridade ao contar as nossas histórias dentro do mundo corporativo. Nós estamos planejando campanhas para turismo com cuidado, vendo como as pessoas vão reagir. Porque as pessoas estão querendo fazer consumo de vingança, né? Elas vêm com esse sentimento de "fiquei um ano sem sair, quero comprar pacotes, acho que posso morrer a qualquer momento". Realmente, é essa a sensação de todos nós, estamos em um trauma social. As pessoas perderam pessoas, estão há muito tempo presas em casa. Além da pandemia tem o pandemônio.
Antônio: Para 2022 a gente visualiza a retomada do turismo com uma oferta maior de roteiros para cidades-chave.
Antônio - A gente tem trabalhado muito na perspectiva de que em outubro se comece a ver um sinal forte do turismo. Já estamos sentindo, em termos de busca, consulta e pesquisas, as pessoas perguntando de roteiros e querendo saber como está a segurança para viajar. À medida que a vacinação avança, as pessoas se sentem mais seguras de voltar a fazer os planos, então acho que até o final do ano teremos um movimento consolidado de reservas de pacotes. Nesse segundo semestre de 2021 o carro-chefe é a Expedição Palmares, mas estamos pensando outros pacotes para Salvador e Rio de Janeiro, talvez Maranhão e Ouro Preto. A gente tem preparado os roteiros com flexibilidade de datas, para retomar progressivamente a visibilidade na plataforma. O turismo como um todo ficou nesse dilema entre entender o momento e precisar retomar a oferta das viagens.
E a questão dos tours virtuais, vocês trabalham com a perspectiva de que esse formato continue mesmo após o retorno do turismo presencial?
Antônio - O tour virtual me surpreendeu muito, porque as pessoas buscaram e se conectaram com diferentes destinos. O tour de comunidades indígenas, um roteiro que a gente tem na Amazônia, de fato aconteceu. Para as pessoas que participaram foi muito prazeroso poder acompanhar as histórias, pesquisar. Fizemos também um da Pequena África, com a Conectando Territórios, uma empresa do Rio. Teve sessão com gente dos EUA e pessoas do Brasil nos dizendo que o tour virtual reforçou o desejo de conhecer o lugar presencialmente, no futuro. Uma coisa não exclui a outra. Você conhece a história e quer ir lá pra ver de perto.
O próximo boletim será enviado na quarta-feira com mais rolês do afroturismo em São Paulo.
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Expediente
Por Gaía Passarelli
com Substack Local
Direção de arte: Milo Araújo
Transcrição: Camila Mazzini
Edição de texto: Mateus Baldi
Logotipo inspirado no Piso Paulista de Mirthes Bernardes.