[Paulicéia 031] Alfredo Caseiro: "Quem gosta de livro, gosta de livraria"
Para dono de livraria aberta durante a pandemia, o coronavírus escancarou a necessidade de espaços de convivência
Aos 53 anos, Alfredo Caseiro poderia ser mais um ex-jornalista/atual publicitário estressado por excesso de trabalho e ressentido com os rumos do mercado de comunicação. Mas não. Leitor voraz desde criança, abriu em agosto de 2021 a livraria Pé de Livros, no bairro de Perdizes, especializada em títulos infantis. Se a escolha desse nicho de mercado foi orgânica e inevitável, como ele conta na entrevista abaixo, o processo de criar o espaço foi longo, cuidadoso e ganhou novo sentido com a chegada da pandemia.
Por que abrir uma livraria durante a pandemia?
Quando fiz 50 anos tive um estranhamento com a vida. Eu sempre fui um cara de tentar entender meu propósito, e o trabalho sempre foi um pilar muito central. Quando veio a pandemia e fiquei em casa, comecei a retomar esse desejo de ter uma livraria. Para jornalista é meio clichê ter vontade de ter livraria, né? Estava insatisfeito com o trabalho, pensando que 2/3 da vida já foi, que eu queria fazer uma coisa mais aprazível. Teve um movimento de juniorização das redações, então os mais velhos foram para agências, para assessoria de imprensa e tal, e agora está acontecendo o mesmo processo nas agências. Como nunca havia empreendido e tinha medo, eu planejei muito, fiquei um ano e meio fazendo plano de negócios, conversando com gente, não foi uma coisa aleatória. Tomei todos os cuidados, sempre fui muito conservador com dinheiro, então tudo que investi foram minhas próprias reservas, comprei o imóvel, fiz movimentos pensados. Se tudo der errado, eu tenho um imóvel, vamos seguir. O que eu não posso é não fazer por medo de fazer. A pandemia, por um lado, me encorajou, porque essa situação extrema que nós estamos tendo a oportunidade de viver é muito significativa para quem precisa entender o que a gente tá fazendo no mundo. Eu não tenho crença religiosa, mas sempre busquei entender o que está acontecendo e como interagir com esse mundo em que a gente vive. Meu filho de sete anos fala: "pai, a certeza que a gente tem é que vai morrer". Todo mundo tem essa certeza, mas a pandemia bate isso na nossa cara, a qualquer momento você pega o vírus e em uma semana você morre. Então acho que tudo isso pesou para me estimular, acabou tirando meu medo, tenho menos a perder porque tudo pode ser perdido.
E por que livro infantil?
Quando comecei a fazer o plano de negócio ficou claro para mim que havia um movimento acentuado de naufrágio das grandes redes. A Cultura e a Saraiva já estavam sinalizando problemas. Eu tinha clareza de que não conseguiria abrir uma livraria grande, então escolhi um nicho para trabalhar. E não cogitei outra possibilidade por um motivo: me tornei o que eu sou graças à leitura infantil. Tinha uma tia que me dava livros. Eu lia um livro, acabava, e começava a reescrever as histórias. Isso me tornou jornalista. Foi uma escolha orgânica, não via outra possibilidade.
Quais foram as particularidades de abrir a livraria no período de pandemia?
Eu tive que esperar o momento certo, porque as pessoas, com toda razão, estavam aterrorizadas. Eu inclusive. Fiquei trancado em casa por um bom tempo, e aí por uma circunstância especial, fui obrigado a adiar a inauguração. Tinha previsto inaugurar em fevereiro desse ano, aí tive um problema grave de saúde e abri em agosto. Eu ouvi muito de amigos próximos que era louco de abrir uma livraria física, que todo mundo tá comprando online. Mas eu sei que essa não é a realidade toda, porque eu não comprava online, os amigos dos meus filhos na escola não compravam online, quem gosta de livro gosta de visitar livraria, gosta de pegar livro, eu sabia que ia funcionar por causa disso. E como tinha essa demanda reprimida, as pessoas estavam loucas e trancadas em casa, quando abri foi uma loucura! Nos primeiros finais de semana eu tive que controlar fila lá fora, porque a gente saiu na Folha, no Estadão, na Veja, as pessoas chegavam com jornal na mão. No dia da inauguração, duas mulheres que moram aqui na rua vieram com o jornal me dando os parabéns, dizendo que era um orgulho ter montado uma livraria no bairro delas. O movimento continua muito forte sobretudo às quintas, sextas e sábados, mas durante a semana também é sempre satisfatório. A gente teve um crescimento rápido nas redes sociais, estamos com quase 12 mil seguidores. Então tá superando todas as minhas melhores expectativas.
Você chegou a pensar se iria concorrer com as livrarias independentes que estão abrindo em São Paulo?
Sim. Eu acho saudável esse movimento das novas livrarias, e acredito que ele vai se acentuar. Vai ter uma livraria infantil aqui perto, inclusive. Acho positivo. A concorrência no mesmo segmento é salutar, porque cada um imprime a sua marca, o seu estilo. Essa pessoa que está abrindo a livraria aqui perto veio se apresentar. Eu não me sinto preocupado, pelo contrário, tô feliz com o movimento de livrarias de rua.
Como você relaciona esse movimento com a falência das grandes livrarias?
Eu acho que a falência das grandes certamente favoreceu muito quem tem uma pequena e de nicho, como eu. As grandes ocupavam um espaço muito relevante, deixavam pouca margem para outras. Para a livraria de nicho ter alguma chance, ela precisa se tornar atraente. O cliente ia à Livraria Cultura e tinha de tudo lá. Aqui tem gente que visita e fala "você está oferecendo uma curadoria que eu nunca vi em lugar nenhum!"
Como você pensa a curadoria da Pé de Livros?
Observo que a pressão curatorial vem sendo distorcida ou esvaziada, como aconteceu com o termo sustentabilidade há uns vinte anos. Muita gente hoje fala que faz curadoria, mas quando você vai esmiuçar isso se traduz em muito pouco. Quando decidi ter uma livraria de nicho, focada no segmento infantil, ficou claro que pra ser relevante, para ser percebida, pra que fizesse a diferença, seria essencial que fosse uma curadoria de verdade. Então eu me dediquei durante quase 8 meses a um processo de imersão, de busca por editoras, por autores, e com olhar atemporal, não me fixando nos lançamentos, nos livros atuais, nas editoras mais evidentes. Identifiquei mais de 90 editoras com títulos relevantes. Esse trabalho é permanente, eu vivo em busca. Vão surgindo demandas de temas que eu não tinha identificado inicialmente e eu vou incorporando e sempre pesquisando quais são as melhores opções do mercado. Como eu te disse, tenho a percepção de que o meu esforço, meu empenho na seleção tem sido reconhecido pelos comentários que ouço. É uma livraria pequena, então canso de ouvir: "nossa, tô vendo coisas aqui que eu não via em outros lugares!". Tenho indícios de que estamos indo no caminho certo e de que é isso que as pessoas esperam. Quem gosta de livro gosta de livraria, gosta do ambiente físico, gosta de pesquisar, percorrer as prateleiras, encontrar coisas.
Qual é o tipo de livro infantil mais procurado hoje?
Quando eu pensei o que queria da minha livraria, tinha algumas referências. A primeira delas é que as pessoas sempre buscam novidades e eu sempre vou ter novidades. Só que há livros, tanto infantis quanto em outras categorias, que são atemporais. Eu tinha clareza de que meu diferencial, do ponto de vista de curadoria, seria encontrar e oferecer esses livros. Vou te dar um exemplo concreto: tem amigos que vieram aqui e viram essa edição de "Moby Dick", em que além do texto você tem ilustrações maravilhosas. Eu tô vendendo ele com uma margem menor, porque quero estimular essa leitura. Ele custa R$70. Nesses 45 dias nós vendemos onze exemplares de Moby Dick. Isso é maravilhoso.
Uma percepção que eu tenho, não sei se está correta, é que na última década o mercado de livros infantis aumentou bastante, isso é verdade?
Sim. Uma coisa que eu não tinha ideia é a quantidade de editoras que existem. Editoras pequenas, médias e grandes, muito consistentes. Isso é ótimo. Porque apesar do Brasil ser um país miserável do ponto de vista de distribuição de renda, com uma série de distorções, ele tem uma classe média pensante que sustenta esse segmento. Os colégios particulares têm bons orientadores de leitura, têm bibliotecas, então é um pequeno segmento, mas que é suficiente para sustentar esse nicho.
Esse segmento é ameaçado de alguma forma hoje?
Felizmente agora parece que os próprios empresários que bancaram essa aventura maluca entenderam que é um caminho perigoso demais, tão entendendo que não vai acabar bem. Mas do ponto de vista do livro, estava se sinalizando uma coisa que causaria um enorme problema, que era taxação1. Isso seria desastroso, porque a margem no livro não é grande, e se ele passasse a ser taxado, para livrarias como a minha se tornaria inviável, simples assim.
É verdade a afirmação de que ninguém lê no Brasil?
É verídica no ponto de vista da distribuição de renda. Considerando que a fatia majoritária do Brasil é de gente com uma renda obscenamente baixa, existe uma fatia grande de pessoas que não lêem mesmo. Mas isso não se resolve taxando, pelo contrário. Tem que tornar cada vez mais acessível. Isso é justamente o que esses caras não querem, porque quem lê pensa. O que eles estão fazendo é um movimento sistemático de desmonte da educação e cultura. Mas o mercado é promissor, as pessoas querem ter acesso ao livro, mesmo as classes que estão excluídas fazem esforços para ter acesso. Curiosamente, tirando os livros evangélicos e religiosos que sempre têm uma curva de crescimento, o infantil também acompanha, eles têm a média de crescimento. O que falta é criar caminhos para ampliar o acesso.
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Será assim: as entrevistas de segunda, com os retratos do Ale Ruaro, seguirão gratuitas; os conteúdos enviados às quartas (sempre um aprofundamento do assunto de segunda) e às sextas (dicas de roteiro cultural em São Paulo) serão enviados apenas para quem apoia em alguma modalidade paga: modalidades mensal, anual e membro fundador, com um valor inicial de R$15.
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O Alfredo Caseiro indica cinco livros para crianças que dialogam com o cenário atual do Brasil, e cinco livrarias de São Paulo que são especializadas em literatura infantil.