[Paulicéia 037] André Sturm: "Fomos o primeiro cinema a fechar e o último a abrir"
Uma conversa com o dono do tradicional Belas Artes, sobre a retomada das salas de cinema em São Paulo.
Antes de seguir com a conversa com o André Sturm, ex-Secretário de Cultura de São Paulo, antigo diretor do MIS e atual proprietário do grupo Belas Artes, preciso contar que essa não é uma conversa neutra — porque transparência é tudo. Sou frequentadora leal do cinema Belas Artes desde a adolescência. Fez parte da minha vida matar aula para ir ao cinema, sair do trabalho para ir ao cinema, comprar ingressos com antecedência para ir ao cinema. Acompanhar a programação nos jornais, aguardar com ansiedade uma estreia. Durante muitos anos, vi todo tipo de filmes em grandes salas escuras, sozinha ou acompanhada, porque pra mim o que importava era ir ao cinema. E como o Belas Artes era (ainda é) meu cinema preferido na cidade, acabei tendo meu gosto cinéfilo formado pela programação das seis salas do espaço. Fiquei muito triste quando o Belas Artes fechou em 20111 (e, sim, isso está na conversa abaixo!), mas também fiquei brava porque na época eu dirigia de Cotia a São Paulo para ir ao cinema e sabia que as salas iam fechar porque estavam vazias, porque faltava público. E fiquei muito feliz com esse papo porque o Belas Artes não só sobreviveu à pandemia como está melhor do que nunca, inclusive com um ótimo serviço de streaming no ar – que vai ser o assunto da edição especial da quarta-feira (só para assinantes).
Dito isso, vem com a gente que o papo é bom!
O cinema durante a pandemia
"O Belas Artes, e os cinemas em geral, foram talvez os negócios mais afetados. Foi o primeiro setor a fechar e o último a abrir. Eu lembro direitinho de quando bateu a pandemia, no final de semana o Dória disse que seria bom se os cinemas e os espaços fechassem. Disse que seria bom, não tinha nada obrigatório. Aí na segunda-feira a gente funcionou e na terça a gente fechou. Nós fomos o primeiro cinema a fechar, em 17 de março. No dia 23 ou 24 veio o primeiro lockdown. Na época, todo mundo achava que ia ser coisa de um mês, ninguém imaginava a dimensão que ia tomar. Dei férias para os funcionários achando seria isso. Só que quando a coisa realmente ficou séria nós começamos a ficar preocupados, porque o cinema tem um custo alto, emprega muita gente, o aluguel é alto2. Fizemos uma iniciativa de vaquinha e fomos super modestos no valor, mas ajudou a pagar os salários. Comecei a pensar o que eu podia fazer, porque parado não dava para ficar. E pensei que um drive-in fosse uma opção. Fui falar com o Secretário de Cultura do Estado, mandei mensagem para o Governador e falei: pô, governador, libera o drive-in! E ele entendeu que era uma maneira mínima de as pessoas terem alguma diversão. Quando ele autorizou, a gente tava pronto."
O drive-in um sucesso enorme. A gente fez uma programação diferente, uma programação do Belas Artes. Teve 100% de ocupação durante dois meses. No mês de julho tinham 53 drive-ins no Brasil e nós fomos o de maior público
Drive-in
"Começou em junho, foi muito rápido. Fechamos em março, em abril parecia que tudo bem, em maio acendeu a luz vermelha. Foi quando eu sugeri o drive-in. E aí tramita, pensa. Quando liberaram, a gente fez acordo com o Memorial da América Latina. No dia em que autorizou, abriram três drive-ins, inclusive o nosso. Foi um sucesso enorme. Foi muito legal, a gente fez uma programação diferente, uma programação do Belas Artes. Teve 100% de ocupação durante dois meses. No mês de julho tinham 53 drive-ins no Brasil e nós fomos o de maior público3. Embora fosse muito caro pra gente, a operação do drive-in permitia pagar os salários e ainda sobrava um pouco para a despesa do cinema. E também ficamos ativos, fazendo alguma coisa, procurando filmes. Fizemos um acordo com a Warner, conseguimos autorização dos EUA para liberar a exibição de filmes mais antigos, passamos "Cantando na Chuva", "Casablanca", "Laranja Mecânica", filmes que vale a pena sair de casa para assistir em tela grande. O drive-in tinha um sistema de som especial, era no rádio do carro, então você ficava o carro fechado e administrava o seu som. O impacto é incrível. A gente funcionou como drive-in até o final de outubro do ano passado."
Reabertura
"O cinema fechou em março, reabriu em outubro, fechou em dezembro, reabriu em janeiro, fechou em fevereiro. Foi terrível. Os cinemas foram muito prejudicados. Quando você olha para setembro, todas as atividades comerciais em São Paulo estavam abertas, todas, até manicure e academia, só os cinemas estavam fechados. E quando a gente reabriu não veio ninguém. Foi um enorme esforço para tentar atrair público, fizemos festival, mostra, lançamos filmes, tudo que era possível. E quando estava começando a melhorar, aí fecha de novo. Aí abre os cinemas de novo e a gente fazendo todo o esforço, tentando. Decidi pegar aquela linha de financiamento que o governo federal fez porque eu não queria demitir pessoas. Tivemos um prejuízo brutal em 2020. Quando em fevereiro fechou de novo, e realmente foi forte, aí decidi fechar tudo. Demiti os funcionários, paguei os direitos, fiz uma reunião com a equipe para explicar que era melhor demitir agora e pagar do que ficar tentado segurar e de repente não ter como pagar. Foi tudo numa boa mas todo mundo ficou triste, todo mundo chorou. Suspendi todos os contratos, com exceção do que fosse imprescindível, e decidi que mesmo se viesse autorização para abrir, eu só ia reabrir quando todas as pessoas com mais de 60 anos estivessem vacinadas. No final de abril autorizaram a volta dos cinemas e nós não abrimos. Só abrimos em junho. Fomos o primeiro cinema a fechar e o último a abrir. Essa reabertura foi pior que a de outubro, mas veio crescendo devagarzinho. Começamos abrindo quatro salas, aí passou para cinco. Agora estamos funcionando com seis salas, duas com três sessões, uma com uma sessão, outras com quatro sessões. Estamos quase em funcionamento normal. Não abrimos às quartas-feiras, por exemplo, porque daí todo mundo tem folga junto e durante a semana é mais fraco."
É seguro ir ao cinema. Mas por ter ficado fechado muito tempo, ter sido sujeito a regras muito duras, e até pela falta de informação, as pessoas acham que cinema é um perigo.
Segurança nos cinemas
"O cinema é talvez o lugar público mais seguro que tem. É um lugar em que você entra e senta, não fica circulando. Você fica olhando pra frente, não fica conversando, fica de máscara. E quando termina o espetáculo você levanta e vai embora. Em um restaurante, você fica conversando, tira a máscara. Em um bar as pessoas trombam em você, não tem distanciamento. No cinema, o ar-condicionado é central, é um ar que é trocado. E isso não é de agora! Desde que eu me lembro o cinema tem que ter ar-condicionado central. Quando você olha pro teto de qualquer cinema e vê aquelas bocas, metade delas joga o ar e metade puxa o ar. É seguro ir ao cinema. Mas por ter ficado fechado muito tempo, ter sido sujeito a regras muito duras, e até pela falta de informação, as pessoas acham que cinema é um perigo. Mas o público está voltando, crescendo. Eu tenho muita convicção que a Mostra vai ter um impacto positivo nessa retomada."4
Impacto do streaming
"Eu tô nessa história do cinema há muito tempo. Já acabou o VHS, já acabou a locadora, e o cinema tá cheio de gente. Também veio DVD, veio disc laser, veio a internet. E o cinema continua. Sinceramente, acho que os streamings ampliaram o interesse por filmes, e quando as pessoas se convencerem de que cinema é seguro, vai aumentar o público, o que já está acontecendo com o cinema comercial. Se você pegar, por exemplo, o "Venom: Tempo de Carnificina", o filme estreou semana passada e fez três milhões de espectadores no Brasil5. Por quê? Porque no cinema comercial o público já tá indo. E no circuito independente está tendo mais resistência. Tem a ver com o perfil do público. A turma do fica em casa mais radical é o frequentador do Belas Artes. Ficou muito ideológica a questão da Covid por causa desse idiota que a gente tem como Presidente da República, que criou todo esse Fla-Flu, né? Então em um momento sair de casa se confundiu com apoiar esse governo, tudo se mistura, embaralha. Eu sempre acreditei e continuo acreditando que o que define a civilização é o encontro, senão a gente tava na caverna. E o encontro hoje se dá no cinema, no restaurante, no show. Acho que o entretenimento se divide em dois tipos: o ficar em casa e o sair de casa. Tem dia que você quer ficar em casa, aí você pede iFood, vê o streaming. Tem dia que você quer sair de casa, daí você vai no restaurante, vai no teatro, vai no concerto, vai ao show, vai ao cinema. São experiências diferentes. Quando você vai ao cinema não é só assistir ao filme. Você toma café antes, come uma pipoca, encontra um amigo. É uma atividade social."
Na hora que subiram as portas ferro foi muito maravilhoso. As pessoas tirando foto dos ingressos, chorando, se abraçando.
Um lugar icônico de SP
"Em 2002 saiu uma matéria pequena no jornal, dentro do Cidades, não era nem no caderno cultural, dizendo que o Belas Artes ia fechar. Naquela época ele estava decadente, ninguém mais vinha no Belas Artes, tanto que quando falou que ia fechar não aconteceu nada. Daí eu fui procurar o proprietário do negócio, que eu conhecia, e falei: não vende esse cinema. Ele perguntou se eu queria ser sócio e eu disse que sim. Em janeiro de 2003, eu já cuidava da programação e ele, da administração. Mas ele estava de saco cheio e de novo falou que ia fechar tudo. Aí eu fui atrás, convenci o pessoal da (produtora de cinema) O2, que entraram de sócios. A gente conseguiu patrocínio do Banco HSBC, fez uma reforma, e começou um novo momento. E no final de 2010 o proprietário do imóvel vem e fala que não vai renovar o contrato. Foi um dos piores dias da minha vida. Fiquei arrasado. Falei com uma jornalista e combinamos a matéria para a primeira sexta-feira de janeiro6. E quando saiu foi aquela comoção. Eu atendia pelo menos cinco jornalistas por dia, tinha plantonista que me ligava todo dia pra saber se tinha novidades7. Aí o advogado do proprietário recuou, falou que renovaria se eu conseguisse o dinheiro. Eu corria atrás de patrocínio, fazia muita reunião. O Conpresp abriu o processo de tombamento8, começou o movimento cívico, social. Foram meses de gangorra, quando parecia que ia dar certo o cara dizia que ia fechar o cinema e eu ficava dois dias deprimido, aí ele ligava dizendo que tinha repensado e eu saia correndo de novo. Tava muito perto de fechar um acordo e um dia antes de assinar o proprietário recuou de novo. Marcamos o fechamento para o dia 17 de março de 2011. Nesse dia as pessoas vieram, cantaram, choraram. E o cinema fechou9. Como o imóvel estava com processo de tombamento no Conpresp, o proprietário não conseguiu alugar. Ninguém ia pegar um imóvel em processo de tombamento. Eu continuava fazendo contatos, procurando outro lugar pra fazer o cinema. Aí o Haddad ganha a eleição, assume e cita três projetos que fazia questão de fazer, sendo que um era reabrir o Belas Artes. O Secretário de Cultura era o Juca Ferreira, que eu conheci bem. Eles chamaram o proprietário para conversar, foi toda uma história, eu dizia que não tinha o dinheiro, eles diziam que iam conseguir patrocínio do aluguel. E realmente, a Caixa Econômica se comprometeu10. Sou muito grato ao Haddad e ao Juca, mas eles não tinham a dimensão do negócio. Eles conseguiram o patrocínio da Caixa11, mas como faz pro cinema abrir? Tive que pegar dinheiro em banco, gastei tudo que eu tinha para conseguir fazer o cinema reabrir. Mas não me arrependo, porque aquele dia em julho de 2014, quando a gente reabriu o cinema... fecharam a Consolação, tinha gente para lá do metrô, para lá da esquina, tinha uma multidão pra ver o evento e tinha a fila para entrar que ia até depois do colégio São Luiz12. Na hora que subiram as portas ferro, tava eu, o prefeito, o cara da Caixa, o Juca Ferreira e não lembro mais quem, olha, só de falar me dá... foi muito maravilhoso. As pessoas tirando foto dos ingressos, chorando, se abraçando.”
“Valeu a pena. Foi um dos raros casos em que a gente conseguiu que as pessoas se mobilizassem por algo a favor — porque normalmente se mobilizam contra. Foi uma reação totalmente espontânea. Vou contar um episódio: quando o cinema ainda tava aberto, fizeram um abaixo-assinado pra não fechar. E aí puseram aqui no café, no balcão. Eu tava sentado com uma amiga, tomando café, e tinha uma senhora e ela vem e fala: 'com licença mocinhos, vocês já assinaram o abaixo-assinado em defesa do cinema? Por favor, tem que assinar...” É esse envolvimento que as pessoas tinham. Mas, enfim, abrimos em 2014. A gente tinha um contrato anual com a Caixa, todo ano tinha que renovar, entrou esse governo, a Caixa falou que não ia renovar13. Tive que divulgar porque tinha que tirar o nome da Caixa, aí também foi um festival de apoio, gente que procurava, vinha aqui, propunha, queria saber como era. Devo ter feito umas 25 reuniões de patrocínio até chegar a cerveja Petra14, que foi incrível. Eu tenho muita gratidão, eles foram muito rápidos e estão conosco até agora, mantiveram o patrocínio durante a pandemia com o cinema fechado."
“Aqui é o Belas Artes, é o local das artes, queremos que tenha todas as artes."
Além dos filmes
"O Noitão voltou a acontecer em junho, mas as outras atrações, como shows e teatro, ainda não. O público tá tão baixo que não dá pra fazer. A gente tá preparando um sacolejo, um upgrade grande em termos de programação... Mas tem uma coisa que eu posso falar que está acontecendo, nós já fizemos para testar há umas semanas, que foi uma feira de vinil num domingo. Deu super certo. Então a partir de novembro nós vamos ter todo domingo uma feira cultural: vinil, livros, gibis, produtos alternativos. Porque aqui é o Belas Artes, é o local das artes, então queremos que tenha todas as artes."
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André Sturm conta sobre a criação do Belas Artes à La Carte, o streaming do Belas Artes, e indica dez de seus filmes preferidos disponíveis na plataforma.
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