[Paulicéia 043] Diógenes Moura: "O abandono é ancestral, meu amor"
O escritor e curador de fotografia fala sobre sua relação com São Paulo e a importância de "Terra em Transe" no Museu AfroBrasil
Nascido em Recife, Diógenes Moura veio para São Paulo em 1989 e desde então testemunha as mudanças dos Campos Elíseos, na região central da cidade. Escritor, curador de fotografia, editor e roteirista, ele assina a seleção das mais de 600 imagens de "Terra em Transe", em exibição no Museu AfroBrasil, e está lançando "Vazão 10.8 - A última gota de morfina", romance autobiográfico em que escancara o luto pela morte da irmã1. São Paulo, “Terra em Transe” e o Brasil de 2021 são os assuntos de hoje, e a criação literária de Moura é o tema da segunda parte dessa conversa, que você poderá acompanhar no Paulicéia de quarta-feira.
São Paulo
“Eu vim para São Paulo porque no dia dois de fevereiro de 1989, na festa de Iemanjá, eu morava no Rio Vermelho, que é um bairro de Salvador. Eu fumei um beck e fui tomar uma cerveja na rua antes da festa e sentei numa barraca — tinha pouca gente nessa época, os bancos eram ainda aqueles bancos pintados, as mesas eram de madeira, não era essa coisa horrorosa padronizada das marcas das cervejas. E eu fiquei sentado tomando a cerveja e fui olhando em volta, o mar, a casinha de Iemanjá, aquelas pessoas cantando samba, sorrindo, e parecia uma câmera giratória. Aquilo foi me esvaziando. Quando acabei a cerveja, falei: vou embora amanhã dessa cidade. Eu não aguento mais um dia aqui, acabou. E eu tinha um amigo que já tinha me convidado para trabalhar em uma agência de comunicação em São Paulo. No dia seguinte eu peguei o telefone e disse para ele: olha só, lembra aquele convite? Eu tô indo. Ele disse: venha. A agência era a Textos e Ideias, do Antônio Mafra e do Paulo Alves, em Perdizes. Vim para ser redator, era uma assessoria de imprensa, tinha clientes como o Projeto SP2. Eu já tinha um pouco experiência de música e tudo mais porque fui barman do Radar Tantã3, lá atrás, em 1982 ou 83. Foi lá que eu conheci primeiro o Bom Retiro, porque a gente saía de lá de madrugada e ia pro Val Improviso, que era O Lugar Underground dessa cidade, um underground que não existe mais. Isso é outra coisa que para mim faz muita falta. Não existe mais loucura. Ao mesmo tempo, é muito interessante o que a gente tá vivendo. São Paulo é assim, ó: ou você entende minha alma, ou eu te devoro. Porque existe o mito que é uma cidade fria. Todo mundo me dizia: São Paulo é uma cidade fria, é uma cidade dura, uma cidade de concreto, uma cidade onde você não vê a lua, você não vê o céu... Mas, por favor, isso é uma coisa piegas, ultrapassada, superficial, completamente boba. Eu acho facílimo morar aqui, nunca tive problema nenhum. Agora é um pouco diferente, porque a gente tá vivendo uma situação extraordinária. Você tem que descobrir a cidade, a beleza da cidade. Tem concreto? Tem. Então veja o pôr do sol no reflexo do vidro fumê. Eu acho tudo absolutamente bonito.
Você tem que descobrir a cidade, a beleza da cidade. Tem concreto? Tem. Então veja o pôr do sol no reflexo do vidro fumê.
Campos Elíseos
“Eu não demorei para descobrir São Paulo, eu já cheguei sabendo, mas moro nos Campos Elíseos, um bairro que se modificou, infelizmente, e que as pessoas confundem com Santa Cecília e Barra Funda. Agora tá muito chato. Esse bairro Campos Elíseos foi um dos primeiros bairros de São Paulo, onde passou o primeiro carro, onde aconteceu a Semana de 22, onde foi construído o Palácio do Governo4. Essas casas todas que estão aqui, as pouquíssimas que restam, fazem parte desse mundo, desse universo. Em 1989 ainda existia isso de dizer de que é um bairro perigoso, que tinha algumas trans pelas ruas, mas eu não vi nada disso. Porque tinham muitas pensões e tudo mais. E permaneceu assim por mais uns 20 anos. Nos últimos dez, o bairro começou a se modificar mesmo, porque começou a virar moda, e tudo que vira moda, para mim é um abismo. O que aconteceu: as pessoas começaram a mudar para cá. Vieram primeiro os músicos, por conta da orquestra do Teatro São Pedro, depois começaram a chegar os fotógrafos, depois veio a primeira turma das bichas, que eram as bichas mais velhas que chegaram junto com os resquícios dos modernos. Depois vieram os DJs, depois veio a segunda leva das bichas mais jovens, bombadas, tatuadas que dormiram e acordaram todas com cabelo raspado e um pitoco em cima. Aí dormiram e acordaram todas de barba, aí dormiram e acordaram com bigodinho arrebitado pra cima e todas com cachorrinhos — e isso é outra história, a ditadura dos cachorros... E vieram os casais modernos com bicicletas, que são uns demônios. O bairro foi se transformando e nós temos agora quatro arrombamentos por semana. Esse apartamento foi arrombado às oito da noite. Entraram com pé de cabra, arrombaram a porta, seis pessoas viram e ouviram e não fizeram nada. Se fosse no nordeste, esses caras não teriam arrombado, porque alguém teria gritado e feito um escândalo. Por que isso não acontece em São Paulo? Eu já pensei bastante nisso, acho que primeiro tem uma comodidade, estou dentro da minha casa, não tenho que olhar a casa do outro. Segundo, duas pessoas me disseram que estavam vendo a novela e acharam que era barulho normal do prédio. Eu não sei. Não tenho resposta pra você. Duas semanas depois aconteceu no prédio da frente. Levaram o laptop, levaram uma garrafa de uísque com três dedos e levaram um Buda que eu tinha em cima da geladeira, cheio de moedas de R$1,00, que eu levaria de presente para a Maura, minha irmã, em Salvador. O colchão fora do lugar, as almofadas fora do lugar. Eles estavam procurando dinheiro, mas não tem dinheiro dentro dessa casa, então eles foram embora. Eu coloquei isso no meu livro5, não podia deixar de fora, é algo que pertence ao bairro, e que pertence a essa palavra horrorosa: gentrificação. Tenho pavor disso. Eu já fazia a documentação do bairro. Então no que eu escrevo entram todas as coisas que venho fazendo, a documentação do abandono. O abandono é ancestral, meu amor, não é de agora, tá? Não vamos nessa, né? Esse cara que tá lá é um monstro, é um demônio, esse ex-capitão, mas esse abandono, essa violência, não é de agora, não começou por causa desse homem que eu não falo o nome que dá azar.
O AfroBrasil é o único museu nesse país que fala de nós mesmos. Não tem reflexos de museus europeus, americanos do Norte e o caralho. Respeita a nossa história!
“Terra em Transe” no Museu AfroBrasil
“É o seguinte: eu trabalhei na Pinacoteca do Estado com o Emanoel Araújo, pra mim ele é uma das cinco personalidades vivas mais importantes hoje. E o Museu AfroBrasil é o único museu nesse país que fala de nós mesmos. Ponto, não precisa dizer mais nada. Não tem reflexos de museus europeus, americanos do Norte e o caralho. Respeita a nossa história.
“Terra em Transe”6 é a minha vida inteira como escritor, não é como curador de fotografia, é a exposição de um escritor que vê a fotografia como literatura. Se você não for ler os textos de Terra em Transe nem adianta ir, e vá com umas duas horas, no mínimo, porque o bagulho é sinistro. “Terra em Transe” é o Brasil na veia. Não tem nada a ver com o filme de Glauber. Eu falei pra imprensa e não adiantou porra nenhuma. A imprensa é cruel, é cada dia mais ignorante, a de São Paulo é a pior de todas. Porque é a mais lugar comum, a que repete mais, a que não arrisca, a que não descobre, a que não ouve e é que se acha. É muito provinciano, muito atrasado. Fazem as mesmas coisas, sempre as mesmas pessoas. É uma gente que não viaja, que não sabe o que é o Brasil. “Terra em Transe” é uma exposição sobre o Brasil que sou eu. Porque eu vivo aqui, eu gosto de viver aqui, eu poderia estar morando em outros lugares, mas não quero, não me interessa. O que me interessa é isso aqui. E aí em “Transe em Transe” é minha vida também, é minha casa, é o meu sexo, são as minhas verdades, os traumas que eu acho que tenho poucos, mas tenho como todo mundo, os meus preconceitos, muitas vezes, tudo isso.
“Terra em Transe” foi atualizado da primeira exibição em Fortaleza, em 2018, para agora. Porque veio a pandemia e entraram seis fotógrafos, que são Daniel Kfouri, que faz um trabalho longo com o padre Júlio Lancellotti, lida com essa situação de rua no trabalho do padre, me parece que a igreja não gosta dele porque é um padre que fala coisas e tudo mais, que se posiciona – o título de uma matéria da revista Piauí, de uma menina que escreve muito bem, é um título perfeito: "O Padre Que Morde"7. Achei genial. Eu e a Dani Tranchesi, que é uma fotógrafa que dirijo há dois anos e com quem já fiz dois livros e exposições, fomos no centro da cidade para fazer a série dos moradores que ficaram na frente do Theatro Municipal no início da pandemia. O Araquém Alcântara, que é quem faz natureza há muitos anos, antes de muita gente. Tem seis imagens dele. O João Castellano fez Brumadinho, porque precisava ter Brumadinho, que era depois de Mariana. Entrou Carla Carniel, que fez o incêndio da Cinemateca, porque já tinha o incêndio do Museu Nacional, que é o grande painel de abertura. E entrou Michel Dantas, um fotógrafo que conheci no Instagram com uma foto avassaladora de um menino em Manaus dentro de um esgoto da palafita onde ele vivia. E aí, junto com a pandemia, eu já sabia que a exposição ia existir, ela foi adiada e fiquei dentro da minha casa escrevendo o "Antiacarajé Atômico"8 e recortando as imagens de jornais, um trabalho que se tornou a Sala da Covid dentro de “Terra em Transe”.
Registros
“Eu recortei imagens dos jornais, da Folha, do Estado, dos fotógrafos brasileiros, é quase uma homenagem para eles. Eu não gosto muito disso de homenagem, mas eles trabalharam durante a pandemia se arriscando. A gente não sabia nada, e eles tavam na rua. Acompanhei a pandemia pelos jornais o tempo inteiro. Através das imagens deles você vê o mundo. Essas imagens são absurdas, tem tudo aí. Eu fiz o seguinte: no meio da exposição tem a Sala da Covid, com essas imagens que contam o percurso de março a outubro de 2020. Tem fotos de lugares longínquos da Ilha de Marajó e tem fotos de São Paulo, esses fotógrafos são incríveis. Tem outra coisa: outro dia eu fui numa exposição no Sesc Bom Retiro, de um fotógrafo, e tinha um texto de um curador que tinha 12 referências, 12 notas, então você não consegue ler o texto que tem doze notas, porque a pessoa que escreveu o texto precisa dizer que, sabe, ela é intelectual, ela conhece fulano de tal. Fulano de tal o caralho! Olha como eu tenho referência, olha como eu sou um intelectual pensante, olha como eu li. É tudo muito frágil e também violento. Eu vi duas velhinhas que diziam "eu não aguento ler isso tudo". São esses detalhes todos que fazem essa história que diz que cultura salva. Cultura não salva porra nenhuma! Pega essa foto aí, foi nos primeiros enterros, em que as famílias não podiam ir, enterros noturnos, cemitérios verticais, os coveiros vivendo o absurdo, sem saber o que fazer, dizendo que não suportavam mais, que não conseguiam dormir, que quando chegavam em casa só ouviam os gritos dos familiares. Alguns fotógrafos fizeram ensaios bem simbólicos.
Brasil 2022
“Mas não esqueça só de uma coisa. Quem colocou esse monstro foram nossos irmãos, tá? Não esqueça disso. Então essa história de que nós somos bonzinhos, isso não existe, isso é ficção científica, eles botaram lá e a gente não sabe o que vai acontecer no próximo ano. Eu não quero arriscar mais nada, porque tem um momento em que você vai envelhecendo… é interessante isso, envelhecer é péssimo, obviamente, mas tem coisas interessantes porque você vai tendo uma certa calma de recuar, como se estivesse no teatro, você vem pra frente da primeira cortina e pode observar melhor o que tem na segunda, na terça e na quarta cortinas. Esse silêncio de uma vida mais vivida, com 60 anos e tudo mais, você pode tentar entender que é assim, e que para mudar a gente vai levar muito tempo. E que o Brasil não é brincadeira! Eu viajo há 52 anos por esse país, cada lugar que eu chego a cada vez, cada cidade, estado, é um país, e a gente não tem ideia do nosso povo, da ignorância do nosso povo, da brutalidade do nosso povo, da bondade do nosso povo, da falta que eles sentem de serem percebidos como cidadãos. De coisas que fazem diferença para mim, como uma música da Adriana Calcanhotto que Bethânia gravou sobre a história do menino que caiu do prédio, daquela torre, e sobre outros detalhes importantes que verdadeiros artistas fazem.
Eu viajo há 52 anos por esse país, cada lugar que eu chego a cada vez, cada cidade, estado, é um país, e a gente não tem ideia do nosso povo, da ignorância do nosso povo, da brutalidade do nosso povo, da bondade do nosso povo.
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Na edição de quarta-feira, só para apoiadores, Diógenes fala sobre o trabalho como escritor e como seus livros conversam com a vida em São Paulo.
Diógenes Moura lança liro sobre memórias da irmã falecida (Diário de Pernambuco)
Projeto SP (Muzeez)
O Padre que morde (Piauí)