[Paulicéia 045] Emanoel Araújo: "São Paulo tem isso de não prestar atenção"
O artista plástico baiano, criador e diretor do Museu AfroBrasil, diz que espaço é sua obrigação ideológica
Essa semana, o artista e museólogo Emanoel Araújo fala com exclusividade ao Paulicéia sobre sua carreira que começa como artista nos anos 1960, na Bahia, tem grandes momentos internacionais, atravessa acontecimentos importantes da cultura brasileira, como a reforma e reabertura da Pinacoteca do Estado, e culmina com a criação do mais importante museu paulistano: o Museu Afro Brasil.
"Eu sou Emanuel Alves de Araújo, nascido em Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano, em 15 de novembro de 1940. Fiquei em Santo Amaro até meus 18 anos, quando fui para Salvador. Eu queria fazer arquitetura, mas fui chamado para as artes plásticas. Em 1957, mais ou menos, fiz minha primeira exposição, que foi com Caetano Veloso, que também era artista plástico naquela época. Caetano Veloso é um exímio desenhista e sempre diz que me ensinou a desenhar e eu o ensinei a cantar. Então ficamos assim. A gente costumava fazer festas no ginásio, ele pintava e eu fazia gravuras. Nessa época, fiz exposições em Santo Amaro e acabei prestando vestibular para Belas Artes. Assim começou a minha atividade artística.
O ano de virada do Emanoel como artista foi 1965, quando fez as primeiras mostras fora da Bahia. "A ideia era fazer exposição no Rio, porque havia possibilidade de uma exposição na Galeria Bonino, e depois a gente conseguiu uma na Galeria Astréia também. Aí eu fiz duas exposições, na galeria mais importante do Rio e na galeria mais importante de São Paulo."
A vinda para São Paulo em 1971 foi motivada pela ideia de casa no campo, junto a outros artistas no Taboão da Serra, onde montou o primeiro ateliê importante, fagulha para uma coleção de arte que anos mais tarde se tornaria a coleção do Museu Afro Brasil. "Foi uma ideia de amigos, vários artistas que compraram lote nesse condomínio, a antiga fazenda da Iolanda Catani, cantora de ópera1. Fiquei dez anos lá. Era uma zona de conforto, mas também comecei a ficar perturbado com a distância da cidade. Era difícil estar isolado no campo, com dependência de empregados, fazer o jardim, trazer coisas da Bahia. Sempre fui ligado a essa coisa de antiguidade, de manter uma memória de coisas antigas. Uma hora vim para a cidade, para o Centro de São Paulo, fui morar na Avenida São Luís. Com cheiro de gasolina e tudo mais."
As passagens pelo Museu de Arte Regional de Feira de Santana, pela diretoria do Museu de Arte da Bahia e formaram o lado museólogo de Emanoel, uma experiência essencial na realização de "A Mão Afro-Brasileira", um trabalho de resgate de memória e ancestralidade afro-brasileira que se tornou tanto livro quanto exposicão.
"O livro tinha 400 páginas, 60 ilustrações, e participação de autores como Sérgio Cabral falando sobre música popular brasileira, Zé Roberto Teixeira Leite falando sobre o século 18, Luiz Marques falando sobre o século 19." A obra o levou aos EUA, onde ficou por dois anos. "Esse livro eu apresentei em Nova York e na época, apesar de todo poder norte-americano, não existia um livro igual.
Não existia até um livro obre artistas negros norte-americanos, com essa ideia de levantamento e memória de quem o negro foi e é na música e na literatura.
E aí um artista chamado David Driskell2 fez um parecido, adaptado para os EUA. Só que o livro dele é mais pobre, não tinha o barroco, não tinha o século 19, não tinha academia, não tinha música. Era um resumo. "
A trajetória internacional de Emanoel durante as décadas de 1970 e 80, com prêmio da Bienal de Florença e curadoria de arte afro-brasileira na Suíça, incluiu dois anos como Visiting Professor da City College de Nova Iorque e viagens "de costa a costa" pelos EUA conhecendo e estudando museus regionais. Emanuel cedeu temporariamente sua coleção à exposição "A Casa do Baiano", em Zurique3, quando, em 1992, veio o convite para dirigir a Pinacoteca do Estado, o mais antigo museu de arte de São Paulo, fundado em 1905 e até então "abandonado e decadente".
"A Pinacoteca era um espaço de orgulho paulistano, mas ninguém ia lá. Quando cheguei, encontrei um espaço que precisava ser solucionado. Chamei o Paulo Mendes da Rocha, e começamos um trabalho que durou dez anos4. Nesse período nós reinauguramos a Pinacoteca e fizemos grandes exposições internacionais, o museu se fortaleceu. Isso se deve também ao Governador Mário Covas, ao (então Secretário Estadual de Cultura) Marcos Mendonça, que me manteve no cargo, e sobretudo ao (Ministro da Cultura nos anos FHC) Francisco Correia Weffort. O dinheiro para a restauração do prédio veio do Ministério da Cultura, e o Covas aderiu, foi um grande incentivador da reforma do museu, fundamental.
É quando Pinacoteca passa de fato a ser uma instituição de São Paulo, não obstante os quase 90 anos de desconhecimento do público.
Emanoel ficou à frente da Pinacoteca do Estado durante dez anos, período em que o prédio foi fundamental para a restauração do conjunto arquitetônico da Estação e do Parque da Luz. A região, profundamente degradada e conhecida como ponto de prostituição, passou a abrigar filas enormes aos finais de semana para ver mostras recordistas de público, como exibições de Rodin, Miró e "Picasso a Barceló" com o (museu espanhol) Reina Sofia5, além de render prêmios internacionais a Paulo Mendes da Rocha.
"O legado desse período foi que a Pinacoteca se tornou uma instituição pública voltada para a cidade, incorporada pelos paulistanos. Nós agimos muito em conjunto com a Estação da Luz e com o Parque da Luz, que é sede da Secretaria Municipal do Meio Ambiente. Fizemos algumas coisas no parque, como uma exposição grande de escultura européia6, e começamos a criar obstáculos para a questão da prostituição. Depois veio o café que dá para o parque, o jardim de esculturas, a restauração do coreto."
Além dos apoios de figuras políticas incontornáveis, como o então prefeito e depois governador Mário Covas, Emanoel destaca o patrocínio do Banco Safra. "O Joseph Safra ficou encantado com a Pinacoteca e patrocinou muita coisa, doou muitos Rodin. Foi assim que a Pinacoteca passou a ser de fato um museu público, porque até então era uma instituição burocrática." Durante a restauração, que levou quatro anos, a Pinacoteca manteve áreas funcionando, mas em 1997 mudou temporariamente para acelerar o fim das obras, ocupando o Pavilhão Manoel da Nóbrega, no Parque do Ibirapuera – onde hoje funciona o Museu Afro Brasil. "Nessa época nós fizemos uma grande exposição do Basquiat com cem desenhos e quarenta pinturas deslumbrantes7. São Paulo nem tomou conhecimento, teve um público pequeno. A exposição pertencia a uma galeria de arte francesa. Se alguém tivesse comprado um Basquiat naquela época, hoje estaria milionário. Mas passou batido e perdeu-se de ter um Basquiat na cidade. Nós fizemos uma parte da exposição do Basquiat em Recife, só com os desenhos. E lá teve uma repercussão enorme!"
São Paulo tem essas coisas de não prestar atenção, é uma cidade muito grande que não dá atenção a tudo.
O desligamento da Pinacoteca em 2002 se deu principalmente por motivos de saúde — mas não só. "Eu tinha tido um infarto, tinha passado por uma cirurgia mal feita da vesícula. Estávamos inaugurando uma exposição do (artista cinético argentino) Julio Le Parc8. A exposição foi inaugurada na terça-feira e eu dei entrada no hospital no domingo, porque todo mundo dizia que cirurgia de vesícula é rápida, você entra num dia e sai no outro. Só que fiquei quarenta dias internado, quarenta dias entre a vida e a morte. Não vi a exposição do Le Parc. Quando voltei, ainda estava fragilizado. Eu estava exaurido, era um trabalho muito direto em situação às vezes precária do ponto de vista administrativo. Então eu disse chega de fazer coisa pública."
O embrião do Museu Afro Brasil veio da então Prefeita de São Paulo, Marta Suplicy, em 2004. "A Marta instigou uns amigos a fazer um museu dedicado à questão negra no Brasil, um museu afro-brasileiro. Eu fui procurado porque tinha todo o acervo de artistas negros que vinha colecionando, um levantamento da questão negra no Brasil do século 18 até o século 20. A Marta me convidou e foi feito. Inaugurei o museu em 2004, com a presença do Excelentíssimo Senhor Presidente Luiz Inácio Lula da Silva9. Mas a Marta não participou porque era candidata do PT à reeleição."
Marta perdeu para o tucano José Serra, e Emanoel viria a descumprir a promessa de não se envolver mais com o poder público. "Eu nunca quis ter cargo político, nunca gostei, não tenho temperamento para isso. Não sei por que cargas d'água aceitei ser Secretário de Cultura do Serra. Eu já tinha recusado o convite da Marta Suplicy, que foi a primeira pessoa que me convidou para ser Secretário Municipal de Cultura. Eu recusei e fechei a boca, não disse nada a ninguém. Depois ela me mandou uma champagne e flores, pelo convite e pela recusa não-pública. Ficou uma amizade com a Marta por isso. Quando o Serra me convidou, eu não sei, acho que estava fragilizado, aceitei."
A passagem de Emanoel pelo Gabinete foi a mais curta entre todos os Secretários Municipais de Cultura, com repetidas crises. "Quando cheguei na Secretaria Municipal de Cultura, eu tive um baque, porque aquilo era uma coisa... mas havia sobretudo a questão grave que era a saída do PT e a entrada do PSDB. Havia muita animosidade do PT em relação ao Serra e ao PSDB, muitas encrencas, em algumas eu até estava metido, tive atitudes que desagradaram o povo do teatro. Eles fizeram até um enterro meu! Aconteceu o seguinte: quando entrei na Secretaria, existia um projeto de um vereador do município para patrocinar dez projetos de teatro. Havia uma comissão na Secretaria de Cultura que aprovava os projetos, que tinham a princípio 300 mil reais para pesquisa sem compromisso de realizar espetáculo, sem prestação de contas. Então você poderia fazer uma foto e pegar os 300 mil reais. Eu achei aquilo um pouco demais, e botei o dedo na ferida daquele negócio dizendo não. Fiz uma comissão de teatro e a gente começou a discutir, mas neste momento houve um alvoroço, como se o mundo fosse acabar.
O ambiente da Secretaria de Cultura era horrível. E eu sempre tive pavor de coisa feia, eu sou uma pessoa que gosta de beleza.
Eu fiquei ali e comecei a brigar com Deus e todo mundo. Briguei com os patronos do Theatro Municipal porque eles queriam transformar o Theatro numa espécie de lugar de barganha, um lugar para ser alugado para fazer batizado e casamento, para ganhar dinheiro. Para você ter uma ideia, uma designer de moda alugou o teatro para um desfile. Eu fui contra. Sempre fui contra as atividades extra-teatro, extra-museu, sou contra completamente contra que um museu vire casa de espetáculo, porque quando desvirtua começa um processo de desgaste."
Além dos constantes atritos com aparelhos culturais, Emanoel não desenvolveu uma boa relação com o autor do convite. "Minha relação com o Serra era estranha, porque eu não podia levar todas as reclamações para ele, porque também ele estava começando a gestão. Mas ele tinha um certo compromisso com TV Globo, e com outras pessoas, de ceder espaços públicos. A Rede Globo queria fazer uma novela gravada no Theatro Municipal. Eu fui contra. Ele queria dar o Municipal para a Paula Lavigne porque ele tinha prometido a ela para o show de Caetano. Eu disse que não. Quando chegamos aos cem dias de governo, o Serra anunciou publicamente dois novos museus, sem me comunicar: o Museu do Futebol e o Espaço Catavento. Quando ele anunciou aquilo eu fiquei muito indignado, porque ele estava tirando da minha Secretaria sem me avisar. E pedi demissão. Fiz uma carta de 10 laudas, que saiu na Folha10.
Passei dez anos na Pinacoteca convivendo com aquela coisa precária, miserável: as mesas bichadas amarradas com arame, aquele negócio de funcionário público de botar santo de gesso, vaso de comigo-ninguém-pode e retrato de família na mesa.
Saí da Secretaria porque não tinha um móvel inteiro, continuava aquele negócio dos processos todos em cima dos armários, a mesma história de comigo-ninguém-pode. Eu dizia para o funcionário: olhe, vocês não são inimigos dos seus colegas, o inimigo é o poder, não adiante ficar botando comigo-ninguém-pode em cima de uma mesa, nem santos de gesso, nem São Expedito, nem Nossa Senhora Aparecida, porque a questão é outra."
Fora da Secretaria, Emanoel reassumiu o cargo de diretor do museu. "Fiquei com esse pepino na mão que é o Museu Afro Brasil. Tive que pegar dinheiro emprestado no banco. O museu era municipal, mantido pela Fundação Florestan Fernandes, com dez milhões que a Marta tinha da Petrobrás. Com o fim da fundação e do dinheiro da Petrobras, para que o museu não acabasse, eu resolvi assumir. Isso correspondia a um velho sonho meu, da minha coleção. Eu fiz um acerto com as pessoas de reduzir o máximo possível os custos e mantive com meu dinheiro. O Serra, que depois virou governador, chamou o (Carlos Augusto) Calil11 para ficar no meu lugar, um sujeito horrível. Dizia que o museu era uma Ferrari e que a Secretaria Municipal não podia manter uma Ferrari. Uma grande confusão. Então vários amigos meus começaram a falar com o Serra sobre o museu e ele topou fazer uma Organização Social, a Associação Museu Afro Brasil, com a condição de que eu doasse o acervo para o estado. Assim o museu passou a ser do estado, não era mais da prefeitura e eu e o Serra voltamos às boas.
O Museu Afro Brasil é meu projeto de vida. É minha obrigação ideológica.
Importante 👉 Se você gostar desse conteúdo, considere assinar o Paulicéia em uma modalidade paga para receber as duas edições semanais extras, enviadas apenas para quem apoia financeiramente o projeto. Por R$15/mês você recebe a cada quarta-feira um aprofundamento do assunto da entrevista de segunda, e na sexta, um guia com onze dicas de coisas para ver e fazer em São Paulo. Você pode se tornar assinante nas modalidades mensal, semestral e anual nesse link.
Na edição de quarta-feira, só para apoiadores, Emanoel Araújo fala sobre o espaço ocupado pelo Museu AfroBrasil em São Paulo hoje, e indica o que considera mais precioso no acervo.
David C Driskell (Driskell Center)
Pinacoteca do Estado de São Paulo (Cidade de São Paulo)
Começa hoje em SP exposição de Rodin (Folha, 1995)
Mostra de Basquiat está na Pinacoteca do Estado (Folha, 1998)
Pinacoteca do Estado reúne obras do argentino Júlio Le Parc (Governo do Estadode São Paulo)
Carlos Augusto Calil: “A cidadania passa pelo simbólico.” (Prefeitura de São Paulo)