[Paulicéia 047] Fabiana Batistela: "A música é uma ferramenta poderosa para regenerar vários outros setores"
A criadora da Semana Internacional de Música de São Paulo fala sobre a importância de retomar o evento em 2021
Entre os muitos eventos que voltam a acontecer de forma presencial, a Semana Internacional de Música de São Paulo tem peso especial: é um sintoma da retomada do mercado musical, um dos mais atingidos dentro da máquina da cultura paulistana. A SIM é um grande encontro com foco em mercado, identidade e transformação social por meio da música e para a edição 2021 buscou promover reencontros, principalmente de São Paulo com sua vocação musical. No papo de hoje, a idealizadora e diretora da SIM São Paulo, Fabiana Batistela, conta quais foram as maiores dificuldades enfrentadas durante a pandemia.
A importância de São Paulo no mercado musical se dá muito pela vocação de hub que a cidade tem. Parada obrigatória de artistas internacionais em passagem pela América do Sul e de artistas em qualquer estágio da carreira buscando grande público, a cidade tinha, até 2019, dezenas de festivais e feiras de negócios no calendário anual. A impossibilidade de eventos presenciais obrigou o cancelamento de eventos de grande porte (como o Lollapalooza, que retorna em 20221) e a extinção de um número ainda incerto de pequenos espaços de shows e projetos artísticos, como a Casa do Mancha2. Nessa reta final de 2021, o cenário começa a mudar: as reaberturas do Studio SP3 e do Cine Jóia4, espaços essenciais da nova música brasileira das últimas décadas, é sintoma de uma retomada muito aguardada do roteiro de shows e eventos – vários têm aparecido nas edições de sexta-feira do Paulicéia, somente para assinantes, com dicas de coisas para fazer no fim-de-semana.
A volta da Semana Internacional da Música de São Paulo, nesse começo de dezembro, é mais um bem-vindo sintoma dessa retomada. Isso porque a SIM não só é um festival de apresentações artísticas, apesar de ter muitos shows na programação. E também não é só uma feira de negócios, apesar de ter a criação de conexões como uma das principais metas. É, nas palavras da idealizadora e diretora geral, a empresária Fabiana Batistela, um evento "focado em ações de conexão". Isso é especialmente verdadeiro em 2021, quando essa conexão ganha tons de reencontro.
"Uma das consequências graves da pandemia, na minha opinião como fazedora de cultura, é esse desequilíbrio, deu uma separada nas pessoas," analisa Fabie, como é conhecida no meio desde quando começou a agência cultural Inker5, em 2002. "O setor foi muito abalado, não só pela crise financeira, que foi muito forte, mas por uma questão emocional, o isolamento pesou na cabeça de muita gente."
Ela destaca o distanciamento entre artistas e público como um dos fatores mais difíceis desse período:
"Cultura é feita com contato, com experiência, com troca. É muito difícil fazer cultura sozinho em casa.”
”Tem alguns segmentos que funcionam: livro, por exemplo, sempre foi lido em casa. Mas para a maioria dos segmentos que precisam de público, como a música, esse isolamento do produtor cultural e do artista foi muito complicado. Uma live na internet nunca vai substituir a experiência do ao vivo. A live é um produto que vai ficar e vai melhorar, mas não substitui o que a gente tem com uma apresentação ao vivo, um festival."
A SIM nasceu em 2013, inspirada na conferência parisiense MaMa, como resultado da experiência de Fabie à frente da Inker, trazendo artistas internacionais para se apresentarem no Brasil e trabalhando a comunicação de bandas locais. "Em 2013, achei que deveria juntar tudo isso num projeto focado em dar oportunidades às pessoas aqui no Brasil, trazer informação, incentivar parcerias e negócios, expor novos artistas, montar uma vitrine de novas tendências musicais do Brasil e do exterior. Por isso a SIM tem esse foco no intercâmbio de conteúdo."
O clique aconteceu durante uma viagem a Paris como agente de negócios de música do Brasil a convite do Consulado da França, em 2012. "Eu trazia muita banda francesa para o Brasil e eles convidaram produtores, programadores e diretores de eventos daqui para conhecer os artistas e estreitar relações. Fui como participante convidada para a MaMa, que era então um evento novo, e voltei muito animada com a proposta que vi: uma sede para receber todos os credenciados, pessoas do mercado da música de mais de 50 países se encontrando para ver painéis, acompanhar debates, assistir a workshops, trocar contatos e informações, tentar viabilizar novas conexões e parcerias. Eu já tinha ido a outras feiras que fazem isso, mas em Paris foi muito forte, porque era muito focado na conexão. O mais legal, que eu quis fazer em São Paulo, era a cidade como cenário do evento. Então você não ficava dentro do galpão como eram as feiras e as conferências tradicionais de música, tinha um espaço durante o dia para ver as palestras, para fazer negócio, e à noite tinha a programação musical espalhada por umas cinquenta casas de shows de Paris. Com a credencial você entrava em várias casas, fazendo sua programação pelo app. Eu falei: quero levar esse formato para São Paulo."
Em 2013, São Paulo estava estabelecida como ponto fixo de tours de bandas de grande porte, resultado de um mercado musical que não girava mais ao redor da venda de discos. "A indústria fonográfica vinha de um período de crise ali nos anos 2000, o CD parou de vender e a pirataria virtual estava tirando o dinheiro do financiador de carreiras, que eram as gravadoras. Quem segurou a barra foi o setor ao vivo, que financiou muita coisa. E o artista virou o financiador da própria carreira. Mudou o papel do empresário, da gravadora, dos selos pequenos, das empresas pequenas. Começaram a surgir muitas empresas com novos modelos de negócios — a Inker foi uma dessas. Por causa desse movimento todo no mercado ao vivo, o mercado internacional nos olhava com ótimos olhos.”
“A gente tinha um governo que apoiava a cultura, a gente tava muito bem na fita. Foi uma época que vinha muita banda pra cá, começou a pipocar festival no Brasil inteiro, festivais grandes vieram pro Brasil, com grana de grandes marcas.”
“O Brasil ainda vinha de uma fase boa de desenvolvimento, e o cenário brasileiro, principalmente o cenário independente, na época estava muito unido. Tava todo mundo querendo aprender, se profissionalizar, se ajudar, crescer junto. Até 2019 a gente tinha muitas casas de show e muitos festivais."
Além disso, as primeiras experiências de plataformas de áudio eram apresentadas como uma solução tanto para os artistas independentes, que teriam à disposição ferramentas para vender sua música diretamente para fãs em qualquer lugar do mundo, e para as gravadoras, que voltariam a comercializar música gravada. "Em 2013 tinha esse clima de tentar descobrir qual era a nova solução pro mercado, um momento de muito otimismo nas plataformas de streaming e na distribuição digital.
E em 2012 saiu um relatório do mercado dizendo assim: indústria fonográfica começa a se recuperar. Esse relatório falava que o mercado mostrava sinais de recuperação e indicava o surgimento das plataformas de streaming, oferecidas como a solução para o mercado fonográfico voltar a ganhar dinheiro com música gravada. Quando a gente fez a primeira edição da SIM, tinha só a Deezer no Brasil, e algumas distribuidoras de música.
Mas a cidade não tinha, ainda, uma music convention, um evento nos moldes dos franceses Midem e MaMa, ou do texano South by Southwest, o SXSW, que acompanhasse essa efervescência toda.
"São Paulo é um hub cultural e econômico da América Latina. É um local de conexão, todos os voos passam por aqui. Fazia muito sentido criar aqui um evento com esse formato para unir o mercado da música internacional.
A SIM cresceu ano a ano6 e em 2019, sétima e última edição pré-pandemia, chegou a 4.000 credenciados, de mais de 30 países. "Esses credenciados são pessoas que trabalham nas indústrias criativas. Em 2019 estivemos em 47 casas de shows de São Paulo, e tivemos mais de 40 mil pessoas circulando por esses espaços." Essas casas parceiras são importantes porque não são apenas espaços de eventos, mas co-responsáveis pela programação. "Nossa programação é colaborativa, feita pelo próprio mercado. São as agências, as produtoras, os consulados, as comissões nacionais e internacionais e os festivais do Brasil inteiro que propõem as noites dentro da SIM São Paulo. Nosso papel é acertar as propostas e juntar proponentes e espaços. As casas montam uma noite que entra na programação oficial da SIM e todo mundo que tem a credencial pode entrar em todas as casas sem pagar. Quem não tem, pode comprar ingresso e entrar também."
Como tudo o mais, esse cenário mudou em março de 2020. E a SIM passou por uma tentativa de adaptação para o virtual: "Sob vários aspectos, 2021 tem sido um ano mais difícil, mas 2020 foi o momento em que a gente foi pego de surpresa. O SXSW, que é a grande referência para o mercado criativo, um evento gigantesco com gente do mundo inteiro, cancelou em cima da hora7. Foi aí que muita gente falou: o negócio é muito sério. Foi esse tipo de sacrifício que a cultura fez. A princípio a gente pensou que dezembro estaria tudo bem, mas quando chegou maio eu vi que não seria bem assim, que a coisa estava ficando pior. E uma hora tivemos que decidir fazer um evento online. Em 2020, a SIM estava indo para o Memorial da América Latina, ia crescer bastante. Tentamos levar todas as ações do presencial para o online da melhor forma possível, tentamos uma adaptação virtual. Lançamos a SIM Community, uma comunidade online, ali teríamos ações, conversas, keynotes, conteúdos exclusivos, dados e muita ação de conexão ao longo de todo o ano. Mas isso foi feito na pressa para a edição de 2020, a execução não foi ideal, tivemos vários problemas e decidimos tirar do ar para reconstruir.8"
Essa tentativa de novo formato, que Fabie conta que não terminou porque a ideia de que a SIM seja uma plataforma, e não dependa de cinco dias por ano para acontecer, deve voltar em algum momento próximo, além de ter trazido aprendizados para a edição 2021, que aconteceu de forma híbrida. "Quem é empresário da cultura sabe que esses últimos anos foram anos de perder dinheiro ou, quando possível, investir dinheiro próprio. A grande maioria dos eventos culturais no Brasil não tem esse caixa, e não conseguiu investimentos, não teve ajuda de nenhum lugar. Nós demoramos para decidir o que fazer, tínhamos pouca flexibilidade de atuação, pouco espaço para risco. Mas conseguimos definir algo que acho que será bom para a SIM e para o mercado, um evento híbrido focado em ações de conexão e de negócios. A gente vai falar sobre o mercado da música, sobre questões de transformação social. Teremos alguns encontros presenciais, em espaços pequenos, resolvemos fazer tudo com capacidade limitada, não ir com muita sede ao pote. Acredito que é um momento que ainda exige muita cautela, muita calma, muito respeito a tudo que a gente passou. É preciso paciência para entender o que aconteceu, onde estamos e como reconstruímos. A nona edicão da SIM São Paulo aconteceu entre os dias 01 e 05/12 com o tema "Música Viva Regenerativa"9, porque a gente quer falar sobre a regeneração da música”.
“Queremos falar de como a música é uma ferramenta poderosa para regenerar vários outros setores do mercado e da economia. Música se conecta com tudo. Se conecta com saúde, com educação, com política."
Fabie acredita que a versão híbrida é necessária no momento, ainda que não seja ideal. "Vi muito atrito nesses últimos anos, parece que tá todo mundo tão ferrado que não tem espaço para entender o outro. O online dá essa falsa liberdade, de você poder julgar as pessoas de uma forma completamente superficial, de atacar. Na internet, a relação entre as pessoas é muito difícil. Presencialmente você tem outro tipo de relação com um ser humano semelhante. Por isso eu acho que os encontros precisam acontecer." Mas, novamente, com cautela: "Não podemos cair na urgência de querer aproveitar tudo que não fizemos durante dois anos. Vamos com calma, com responsabilidade — o online é necessário para juntar pessoas, principalmente as que não estão em São Paulo, e que não poderão viajar. Eu não consigo trazer a comissão australiana para o Brasil, por exemplo. Porque daí eles não conseguem voltar para a Austrália. E as passagens dentro do Brasil estão caríssimas, as pessoas não vão conseguir viajar. Então são várias coisas que temos que considerar na hora de pensar um formato de uma feira que propõe juntar as pessoas. Você não pode propor algo que prejudique quem participa.”
"2020 foi um ano muito difícil e que acabou com nossos recursos. Evento online não tem a mesma captação — tirando algumas lives dos sertanejos, acho, os eventos não fazem muita receita. Você não tem bar, não vende ingresso suficiente e, no geral, as pessoas não costumam pagar por conteúdo online. Então a receita é bem menor. Além disso, achávamos que em 2021 as coisas estariam melhores, que poderíamos fazer um plano de eventos presenciais com possibilidade de venda de ingresso, de captar mais patrocínio, de ter venda de bar — enfim, um evento normal. Mas não rolou. E para mim, tem um agravante que é a maternidade, uma coisa maravilhosa mas que profissionalmente para mulher é mais complicado."
Em 2019 Fabie teve que se afastar dos últimos momentos da produção da SIM por causa de complicações na gravidez, e não chegou a ver o evento. "Meu filho nasceu cinco dias antes da SIM. Ele nasceu prematuro, ficou na UTI. São várias questões que a gente tem que enfrentar como mulher e eu me vi, no primeiro ano da maternidade dele, num momento de isolamento social, dentro de casa, tendo que trabalhar — quem é mãe sabe o que isso significa. Eu sou mãe solo ainda, sustento meu filho sozinha, foram dois anos muito tensos."
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Na edição de quarta-feira, só para apoiadores, Fabiana Batistela fala sobre os objetivos sociais da SIM, como ter firmado compromisso com 50% de participantes mulheres em 2015, e os planos da feira para os próximos anos.