[Paulicéia 025] Facundo Guerra: "São Paulo permite experiências de todos os tipos"
O empresário conta porque sua próxima aventura, a renovação de um tradicional ponto do centro da cidade, deve ser a derradeira.
Ao contrário de alguns personagens do Paulicéia, o Facundo Guerra é uma pessoa que conheço e acompanho há vários anos. Mais exatamente, desde a abertura do Vegas1, lá em 2005, quando ninguém ainda chamava o lado centro da Augusta de Baixo Augusta. Desde então Guerra, que é argentino e em 2019 recebeu título de cidadão paulistano, criou mais de vinte empreendimentos na cidade, sempre dentro de uma linha de trabalho que envolve ressignificar espaços da cidade — caso do Cine Jóia2, antigo cinema que virou igreja e estacionamento antes de ser reembalado como casa de shows, e o Blue Note3, no Conjunto Nacional, que foi o primeiro endereço do Fasano e se tornou um bar de jazz com serviço de coquetelaria. O novo plano envolve mais um lugar icônico e abandonado da cidade: o Love Story, boate que durante 28 anos serviu como after hours extraoficial da vida noturna paulistana, fechado pela justiça em 20184. Junto dos sócios Cairê Aoas e Lily Scott, e com uma equipe que inclui o performer Ikaro Kadoshi e a pesquisadora Mayumi Sato5, Guerra quer abrir uma nova página na história do Love Story, com outro nome e funções. No papo abaixo, ele conta porque esse deve ser seu último projeto.
Como você chegou até o Love Story — ou ele chegou até você?
Todo mundo sabia que o Love Story já estava em situação financeira complicada há muito tempo. E aí, há uns 6 meses estourou a notícia de que estava indo para recuperação judicial. Isso atravessou todos os grupos de Whatsapp, foi uma bagunça, todo mundo começou a receber, foi meio que um meme. O espaço foi para leilão, a gente negociou e venceu. Tinha uma negociação de ponto de mercado e farmácia, segundo especulações. Como a gente ganhou, tinha preferência de negociação de ponto. Só que o dono do prédio fez a exigência de que ficássemos com o prédio inteiro, que é o Love Story no térreo e mais três andares. Então fizemos um funil: Love Story fica embaixo, o segundo andar terá uma casa de chás com uma livraria de livros eróticos. Nos dois últimos andares, quem vai entrar é a Lush, um motel de experiências aqui em São Paulo. Será um templo do sexo em São Paulo, com o Love Story no primeiro andar.
Qual a importância desse projeto na sua carreira?
Desde pequeno eu tô tentando responder: o que é ser paulistano? Essa é uma pergunta de fundo. Tinha essa coisa de ser argentino no Brasil, não conseguia me encontrar muito como brasileiro. Minha mãe vendia empanadas no Centro, meu avô vendia balas, eu venho de uma família de ambulantes e a gente usava o Centro como nosso território. O Centro pra mim sempre foi muito importante, sempre me identifiquei não como brasileiro, mas como paulistano do Centro, porque São Paulo é muito grande pra você achar uma identidade da cidade inteira. Então, todos os negócios que eu montei até hoje só faziam sentido pra mim se representassem de alguma maneira esse paulistano multifacetado. Se você olhar a relação dos lugares todos, cada um deles tinha essa questão de fundo do que é ser paulistano: o Vegas, o Riviera, o Belas Artes, o Lions, o Cine Jóia, o Mirante 9 de Julho, o Blue Note, dentro do Conjunto Nacional, todos esses lugares falam sobre São Paulo. Era uma questão de busca de identidade. Quando eu cheguei no Arcos, que fica no subsolo do Theatro Municipal, falei que ia pendurar as chuteiras, que tinha que parar. Já fiz quatro boates, três casas de show, restaurante, cinema, centro cultural, teatro, já testei tudo. Pensei: é hora de parar antes de ficar obsoleto.
E hoje, você tem essa resposta para o que é ser paulistano?
Não existe paulistano. Primeiro porque essa cidade é feita de ângulo reto, São Paulo é a cidade mais artificial que tem, para onde você olhar você encontra um ângulo que não existe na natureza. É uma cidade de sombra, de ângulo reto, uma cidade sem pôr do sol. É muito louco que a gente tenha uma Praça do Pôr do Sol, uma cidade de 25 milhões de habitantes com um ponto específico para observar o pôr do sol. O que São Paulo tem de mais legal é sua gente, mas a gente de São Paulo não é paulistana. É gente que é corajosa e saiu da sua cidade por inúmeras razões, por conta da sua sexualidade, por conta da sua ambição, porque a cidade ficou apertada demais. E esses humanos se reúnem em espaços físicos. Só que esses lugares físicos desaparecem. E esse desaparecimento corrói a identidade do paulistano. Então, pra mim, resgatar esses lugares é resgatar um pouco dessa narrativa do que é ser paulistano.
Você sente que existe uma pressão sobre qual vai será seu próximo negócio?
Existe aquela coisa de "ah, esse cara já tá fazendo isso há muito tempo, sai da frente, deixa os outros passarem". Porque o que eu estou montando ainda está fazendo sucesso e fica uma pressão assim, tipo: agora ele vai se fuder. Aí eu vou e monto o Altar e, "pô, não foi dessa vez, mas no próximo ele vai se fuder!". Coisa tipo banda boa que vai lançar o terceiro disco, existe quase que um desejo coletivo para que o terceiro disco seja uma bosta. Não tô querendo me comparar com uma banda boa, acho que é uma coisa humana, porque quando a gente observa nossos pares tem dois gozos: a ascensão e a queda. É isso que faz uma boa história. Dentro dessa história toda que tô contando em São Paulo, quando cheguei no Arcos falei assim: "pára aqui, você chegou embaixo do palco da Semana de 1922, um beijo, não tem nada melhor". Não parar de trabalhar, mas parar de fazer a mesma coisa, tô fazendo a mesma coisa há 20 anos. Vou dar aula, vou prestar consultoria, vou cuidar do Altar, vou ter programa na TV agora, na Sony, mas não quero mais abrir boteco, não quero mais estar nessa coisa de bebida, já deu pra mim. Quero ser mais comunicador, mais professor, mais consultor. E também tem uma nova geração que está fazendo coisas muito legais, eu não preciso ficar controlando o rolê. Uma hora você tem que parar mesmo, e tô sentindo esse impulso. Só que aí veio a pandemia e eu pensei: quer saber, pendurar a chuteira agora seria covarde. Pra mim o Love Story faz sentido porque é um belo jeito de parar. Porque agora posso tentar algo que não foi feito ainda, mexer com uma matéria espinhosa pra caralho que é o sexo. O que a gente está querendo fazer não tem paralelo.
Você prevê que vai estar aberto e funcionando pro público quando?
Depois do Carnaval do ano que vem. Mas antes da reforma faremos a última festa do Love Story. Vamos matar o estoque de bebidas que ficou ali. As pessoas vão beber o Love Story original, acabar com as garrafas. Em vez de jogar fora, vou embebedar a elite paulistana. Vai ser uma semana antes da obra. E depois, não vamos demolir muita coisa. Não quero destruir o Love Story.
Que público você espera como frequentador desse cabaré?
Nunca projeto público, faço pra mim. Fiz o Blue Note porque eu não me sentia atendido nos clubes de jazz de São Paulo. Não tô falando que são ruins, mas eu acreditava que dava pra ter uma experiência de show melhor, e acredito que fiz isso no Blue Note que, depois da Casa de Francisca, é a melhor casa de shows da cidade. Então, tô fazendo pra mim porque sou curioso, porque quero um espaço desses. Tenho sorte que não sou um tipo excêntrico sem paralelos, sempre tem um monte de gente que gosta do que eu gosto, vou encontrando outras pessoas com o mesmo recorte comportamental.
Como será o novo Love Story?
Se eu abrisse esse espaço há cinco anos seria cedo demais. Hoje, até por conta do Instagram e da cultura do nosso tempo, o corpo já é um corpo multiforme e a mulher está falando sobre o próprio prazer. O vibrador é um exemplo do que aconteceu na pandemia — ele era um pinto roxo de 25cm, vendido em sex shop em caixa preta, e hoje em dia as minas usam os vibradores, que são desenhados por mulheres engenheiras e que são objetos de design. Pra mim, esse deslocamento que aconteceu com o vibrador é muito emblemático do que aconteceu com o sexo, e com o corpo por extensão. Olha o que aconteceu com o pole dance! Ele era utilizado por mulheres para sexualizar e erotizar o corpo, despertar o desejo de um homem, e hoje em dia é uma ferramenta de ginástica. Esse é o deslocamento, se voltando para o feminino. O que eu quero fazer é mostrar para uma classe média curiosa, esperta, que existem preliminares que antecedem o sexo e que elas tão no campo da cultura e da arte. Não estou fazendo uma casa para os amantes de shibari, por exemplo, esses têm os seus locais, muito mais no campo do privado do que do público. Eu tô querendo trazer a luz do shibari para outros interessados, como eu sou, porque para chegar no shibari tem que atravessar uma montanha de pornografia com a qual eu não tenho nenhum tipo de relação. No palco não vai ter coito. O interesse não é o sexo, é teatralizar os ritos. Na equipe temos a Mayumi Sato fazendo uma curadoria dos corpos, pessoas e rituais que vão para o palco. Ela é pesquisadora e diretora do Sexlog, tem legitimidade para falar com delicadeza com as pessoas e não usá-las como atração de circo. O Íkaro Kadoshi vai dar um tratamento queer e teatralizar essa parada toda. Tem o Caire Aoas, meu sócio no Arcos, cuidando do operacional, a Lily Scott, que vai cuidar da programação e direção criativa do espaço, e a Lígia Chaim, que vai cuidar da luz e veio do Teatro da Vertigem. O estúdio de arquitetura é o Todos, e o plano é contar a história do Love Story sem apagar a história do Love Story. Então você vai lá, vai chegar às sete da noite, vai ter um puta de um bar de drinks e comidas para compartilhar. As apresentações serão em esquetes de 15, 20 minutos espaçadas ao longo de uma noite. Não vai poder usar o celular pra registrar nada, quem tentar tirar foto será convidado a se retirar. Quero um lugar onde as pessoas possam fantasiar ou possam ver as fantasias ali e que elas possam se arriscar. Esses shows-pílulas podem ser strip-tease feito por uma mulher ou homem cis ou uma pessoa trans, pode ser um show de uma drag queen, pode ser uma apresentação de shibari, uma apresentação de BDSM, leitura de poesia marginal. Pode ser voyeurismo de vapor, onde a gente coloca um box e sobe vapor e a pessoa fica passando a mão no box e nos revelando pedaço do corpo. Pode ser um exibicionismo de pés. E teremos uma MC, que vai explicar o que vai acontecer. É um lugar onde você vai para ver as preliminares, vários tipos de corpos, vários tipos de sexualidades e vários tipos de gêneros, mas sem cair no campo do coito. É por moralismo? Acho que é um limite. E não vai continuar chamando Love Story, a gente vai chamar algo meio Prince, assim, sabe o símbolo do menor e o 3? Esse é o nome, <3, a gente comunica assim, mas as pessoas vão chamar do que elas quiserem.
Dá para dizer que é uma ressignificação dessa região de São Paulo, com um novo "templo do sexo"?
Aquela região é o lugar do sexo em São Paulo hoje, porque é ali que está concentrado o sexo gay, o sexo das mulheres trans e travestis. É o nosso Red Light District. Aquilo tá no campo do desejo. Então acho que faz todo sentido um templo pro sexo.
Como você acha que será esse pedaço da cidade em 2022?
Cada vez mais pulsante. Aquela parte ali, meio Vila Buarque, República, Santa Cecília, é muito legal e ainda é sombria. A gente tá vivendo mais ou menos a situação da Rua Augusta em 2007, que já tinha Vegas, o Studio SP e os puteiros operando. Uma mistura de lugares feitos por uma classe média intelectualizada, convivendo com a Boca do Lixo, aquilo que os paulistanos têm uma certa vergonha. O Love Story é importante para a história da cidade exatamente por isso: era o segredo sujo do paulistano, uma espécie de um tapete para onde a gente empurrava a sujeira.
As últimas imagens: em ensaio, o fotógrafo Ale Ruaro registra o Love Story de portas fechadas.
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