[Paulicéia 075] Flávia Durante: "A pandemia mostrou que o Pop Plus tem potencial para ser plataforma"
A criadora do maior festival de moda e cultura plus size da América Latina fala sobre levar a vida do online para o offline
Gosto de pensar que tenho algo em comum com a Flávia Durante, nossa entrevistada de hoje. Nós temos a mesma idade e estamos na internet-br desde quando não era nem mato ainda, mas um terreno seco com espaço pra todo mundo plantar, o que nos dá experiências parecidas com o jornalismo cultural online. Criamos nossos próprios espaços do zero, contando com bons contatos, muita opinião e certa tendência de ser early adopter de tudo — durante anos, toda vez que pintava uma nova rede social eu entrava e quem já estava lá antes? Pois é, a Flávia. Só que enquanto eu enveredei pros lados da música eletrônica, ela mergulhou no indie rock e, depois, foi editora de lifestyle de portais como Vírgula e TPM e assessora de imprensa de espaços importantes da cidade.
Mas, ainda que todas essas etapas sejam muito importantes, o que a Flávia faz hoje é algo que começou sem grandes planos: o Pop Plus, que nasceu como bazar para vender biquínis para amigas e hoje é um verdadeiro festival de moda, arte e cultura plus size que ocupa o enorme Club Homs, na Avenida Paulista, quatro vezes por ano (com fila na porta).
No papo abaixo, Flávia fala sobre essa vida em que uma coisa leva a outra, sobre como a internet é semente de tudo que faz — o que, acho, é algo o que temos em comum.
Se você gostar desse papo, leia também a nova edição da Stories Collective, plataforma de arte, cultura e moda focada em histórias contemporâneas e mídias digitais. A edição de maio, online e impressa, traz uma entrevista minha com a Flavia que fala mais a fundo do Pop Plus.
“Sempre gostei de ler e de escrever, era daquelas crianças cinéfilas, sabe? Eu queria escrever sobre cinema, então minha ideia era ser jornalista de cinema. Depois, acabei entrando no meio da moda por acaso. Paralelamente, minha grande paixão é a música. Não trabalhei com cinema, mas sempre fui costurando essas áreas da comunicação, moda e música.
Sempre gostei de me vestir diferente, só que eu era bem indie, sempre gostei de usar a camiseta de banda, essas coisas. Só depois que eu me tornei adulta, quando vim morar em São Paulo e fazer minha vida aqui,que comecei a engordar e a sentir essa dificuldade de me vestir do jeito que eu sempre gostei. E aí comecei a esbarrar nas coisas e sentir que "aqui não não tem nada para você, aqui não é o seu lugar".
Lifestyle
“Por volta de 2009, a Clau Assef me chamou para ser editora de lifestyle do (antigo portal de conteúdo do grupo Jovem Pan) Vírgula. Eu estranhei, né? Disse que nunca trabalhei com LifeStyle, com moda, por que me chamar? Ela disse: justamente por isso!, não queria chamar alguém desse meio, queria uma linguagem mais acessível, mais popular. Então fui quebrando a minha cabeça, na época quase não falavam em moda plus size, em diversidade de corpos, mas comecei a levar essas pautas pro Vírgula, chamava as blogueiras de moda plus size, que estavam começando a aparecer, para fazer reunião de pauta lá, a fazer entrevista, a trazer uma linguagem mais popular, mais acessível para a moda e lifestyle. E foi dando super certo! Depois fui pra Trip, pra TPM, para ser editora dos sites. Também mantive essa pegada na TPM, de trazer a moda com diversidade. Fui gostando do assunto, vendo que dava para fazer de um jeito mais bacana, que dava para ocupar esses espaços, que eles pertenciam a todas as mulheres e não só a um determinado perfil.
“E, paralelamente, naquela coisa de querer ter um negócio próprio, por volta de 2011, 2012, eu tive a ideia de revender biquínis plus size. Sempre gostei de praia, de piscina, de água, sou do litoral, e depois que engordei nunca deixei de frequentar esses espaços. Comecei a comprar e revender biquíni no intervalo do trabalho, na casa das amigas, em salão de beleza. Mas, assim, era uma coisa bem despretensiosa, para ganhar uma verba extra no final de ano. Embora eu não tivesse ainda consciência política do corpo que tenho hoje, já tinha essa preocupação de querer vender biquíni para as pessoas não se esconderem.
“Para facilitar esse processo, como ainda não tinha dinheiro para fazer uma loja virtual, muito menos uma loja física, decidi fazer um bazar. Foi em 8 de dezembro de 2012. Não tinha nem nome ainda. O flyer era a cara da Beth Ditto. Eu vendia os meus biquínis, uma amiga vendia leggings coloridas e estampadas, outra tinha um brechó, outra, camisetas. Juntamos uma meia dúzia de marcas ali no Espaço Zebra, da Neli Pereira, no Bixiga. Como eu já tinha acesso e contato com blogueiras, e experiência com assessoria de imprensa, o bazar teve uma repercussão bacana, todo mundo ficou interessado, querendo saber quando ia ter de novo. Fiquei uns três anos fazendo assim, bem informal mesmo. Só em 2014 fui ter o estalo de que o negócio estava ficando sério, quando já tava mobilizando um monte de marca de outras cidades, outros estados. As pessoas vinham, se emocionavam. Aí surgiram duas questões: primeiro fui tentar entender por que isso acontecia. Por que as pessoas gordas eram tão excluídas da sociedade, do mundo da moda.
Fui atrás e comecei a receber convite para dar palestras, participar de debates. Fui ativista de um jeito informal, nunca fui aquela pessoa que se prepara para ser uma ativista. Fui muito de acordo com as minhas vivências.
“Mas como a demanda começou a ficar muito forte, tentei entender melhor, me aprofundar para não passar uma mensagem errada, principalmente porque eu tava começando virar uma representante desse segmento. Precisava entender de onde vinha a gordofobia, por que a gordofobia na moda era assim. Ao mesmo tempo, precisava fazer o Pop Plus virar um um negócio. A partir de 2015, 2016, fui procurar meus sócios, uma produtora chamada Arte Shine, que cuida de toda parte operacional, financeira, essa parte que a gente que é de humanas nunca é especialista. Estamos juntos até hoje. Isso faz toda diferença. E aí em 2016 já fomos pro Clube Homs, na Avenida Paulista.
“Em média, são 13 mil pessoas por edição, mas ficamos em pausa por dois anos por causa da pandemia. Chegamos a ter uma edição com 18 mil pessoas, a de março teve nove mil pessoas.
Uma pessoa da internet
“A primeira vez que vim morar em São Paulo, em 98, vim para fazer o curso de jornalismo do Estadão. Depois passei uma época entre idas e vindas, fiquei desempregada, voltei pra Santos e em 2004 voltei e fiquei de vez.
“Cheguei a trabalhar na Agência Estado, era uma uma coisa muito old school, eu fazia notícias pra pager e pra celular. Sempre foquei em comunicação rápida, em internet. No Estadão tinha acesso à internet direto, então quando não tava fazendo as aulas, tava na internet ou nas listas de email tipo a Poplist, ou no chat de música do Zaz.
“Foi através da Poplist que comecei a entrar na noite de São Paulo. Não conhecia ninguém, e comecei a conhecer a galera através da internet. Muitos são meus amigos desde 98, daquela época do Borracharia, Alternative, Matrix, DJ Club. Eu ia toda hora, encontrava a galera, estava sempre em todos os shows independentes. Não sei como a gente conseguia dinheiro para fazer isso a semana inteira, com salário de foca! E comecei a fazer o Assessorindie assim, de tanto show que eu ia.
O Assessorindie nasceu porque eu via que a informação da cena alternativa de shows era muito solta. Decidi juntar, organizar. Mandava um e-mail uma vez por semana para as pessoas falando: olha, vai ter o show do The Butchers Orchestra no Borracharia.
“Eu fazia agenda e dava dicas de bandas legais para conhecer. Fiz isso acho que uns seis ou sete anos — era uma newsletter! E comecei a ser chamada para tocar também nos lugares, comecei a organizar umas festinhas.
“Mesmo a ideia do Pop Plus veio da internet. Veio de um fórum Plus Size no Facebook. Minhas pesquisas iniciais sempre partem da internet, eu acabo indo do online pro offline. A internet me ajuda o tempo todo a descobrir marcas e artistas, ir atrás dos clientes. Falo com gente que reclama que não encontra roupa, fico pesquisando marcas plus size para me apresentar. A gente acha que tá muito grande e às vezes não tá, não. Tem muita gente aqui em São Paulo que ainda não conhece.. A gente fica naquela bolha de achar que tudo na internet é muito grande, mas não tá no grande público. Chega de fora quando aparece na Globo, por exemplo. Por isso, eu tô sempre atrás de furar essa bolha da moda plus size, do feminismo gordo, da galera ativista, das influenciadoras plus size. Eu quero chegar naquela mulher gorda que tá ali, que não conhece nada de Ju Romano mas que quer se vestir bem.
Latinices
“Quando estava em São Paulo, por volta de 2001, fui morar um tempo no apartamento de uma família e o dono da casa era um professor argentino, super fã de rock argentino. Ele tinha uma coleção gigante de discos e o que eu mais organizava na casa era os discos dele. Aproveitava para ouvir um monte de banda famosa da Argentina, Soda Stereo, então comecei a gostar através do rock argentino. E aí depois, frequentando a noite de São Paulo e amadurecendo o gosto musical, fui num show de uma banda chamada Desordem Publico, era uma banda venezuelana de ska, pirei naquilo. Uma banda super legal, um puta show, e a gente nem conhece direito. Aí comecei a pirar em músicas e bandas latino-americanas, primeiro com o rock e ska, depois com a salsa e a cúmbia. Fui pra Colômbia em 2013, e foi um caminho sem volta, né?
Porque aí você começa a pesquisar uma coisa, que leva a outra, quando você vê você já tá envolvido. Tô sempre querendo descobrir coisas novas, ouvir espalhar, martelar no ouvido das pessoas.
“É difícil não cair naquela coisa meio tiozão de que no meu tempo era melhor. A gente ia, fazia fita cassete… Pelo amor de Deus, eu não tenho saudade disso, mas acho que instiga mais curiosidade de ir atrás. Hoje em dia as coisas vêm com facilidade e dispersam muito rapidamente também. Parece que gente tá sempre ansioso por mais. Como eu sou muito fanática por Rosalía, eu tô acompanhando de perto, com o pessoal que é menos da metade da minha idade, é engraçado as turmas de amizade que eu formo porque fico querendo entender, saber do que eles tão falando. E eles estão sempre atrás da próxima novidade, acaba gerando uma ansiedade que é até excessiva. Faz parte da juventude, mas às vezes eles acabam nem curtindo a coisa nessa ansiedade do próximo.
Pandemia
“A gente tava com o evento montadinho. Já corria aquela conversa de pandemia, que ia pausar, mas não tinha nada certo ainda. Tínhamos pensado em cancelar, mas as marcas pediram "pelo amor de Deus, não cancela, o Pop Plus é onde a gente tira boa parte da nossa renda do começo do ano!" Resolvemos arriscar e manter, falamos "vamos fazer". Aí montamos tudo, prontinhos para os dias 14 e 15 de Março de 2020, e no dia 13 chegam os decretos cancelando todos os eventos acima de 500 pessoas. Decretos tanto da Prefeitura quanto do Estado. E aí foi um horror. Você pode imaginar a choradeira que foi. Brigaram muito comigo, e eu não tinha culpa, era um decreto. Não tinha o que fazer. E agora, pensando bem, era o certo mesmo. Mas que na época estava tudo desencontrado.
Quando você é produtor de eventos, tá acostumado a vir uma chuva e não ir ninguém, um expositor ficar doente e ficar um buraco ali, ou não dar público porque aconteceu alguma coisa. Mas nunca tá esperando uma pandemia, um evento que vai parar o mundo inteiro.
“A gente ficou totalmente perdido, não sabia o que fazer. E aí, para amenizar o prejuízo das marcas, principalmente as de outras cidades, que tinham vindo para São Paulo, fui realocando de cinco ou seis marcas em mini-eventos que elas mesmas estavam se mobilizando para fazer. Algumas conseguiram fazer em um ateliê na Vila Madalena, outra em um hotel no Jardins, eu fiquei desesperada ali tentando amenizar enquanto meu sócio tava na desmontagem. Foi uma loucura. Uma pressão horrível, fiquei totalmente no breu, entrei em depressão. E ficou tudo parado por dois anos, só começou a voltar no final do ano passado.
“Nesse tempo, nós fizemos três bazares virtuais online pelo Facebook, um esqueminha bem pequeno, daqui de casa mesmo, como se fosse um shop tour online, com quatro marcas em cada edição. Cada uma se apresentava 15 minutos e eu ficava interagindo, pedindo para mostrar peças. Foi uma coisa bem mambembe mesmo, mas foi também uma volta ao começo, teve apresentação de dança, aula de yoga. Tipo um mini Pop Plus online!
“A resposta do público foi bem legal. Acho que, como já tava tendo muita coisa online, o povo tava um pouco cansado. Mas deu uma repercussão bacana, quem participou gostou bastante, quem viu na época gostou também. Foi importante ter feito, foi a partir disso que eu vi também o potencial do Pop Plus chegar para outros lugares do Brasil como plataforma, e não só com a feira. Esse foi o primeiro estalo que eu tive de ver que tem interesse fora daqui.
Plataforma Pop Plus
“Serão quatro eventos em São Paulo esse ano — já fizemos a de março, tem outra em junho. Estamos planejando datas em Campinas, no ABC, em Santos e em cidades do interior paulista. Recebemos pedidos de pessoas de todo o Brasil, mas ainda não dá pra viajar para fora do estado, queremos focar em São Paulo, aqui ainda tem muito a crescer, tem muita gente vindo pro festival pela primeira vez.
“Hoje temos as marcas de moda, todas autorais, com produção própria, desde moda até lingerie, acessórios, calçados, tudo do vestuário. Tem a parte de debates, que sempre fala de questões pertinentes tanto para pessoas gordas quanto para o mercado plus size. E temos as apresentações artísticas de dança, pocket shows, DJs. É um verdadeiro festival de moda, música e arte, com dois dias de duração.
“Com esses dois anos em pausa, e com o evento que a gente fez online ano passado, percebi o alcance da nossa distribuição, até onde o Pop Plus chega no Brasil todo. A gente decidiu ampliar a plataforma, o site e o conteúdo. Não é só falar de agenda de evento, mas sim mostrar que somos uma plataforma de conteúdo constante sobre esse nosso mercado. Precisamos ter matérias constantes sobre moda, cultura pop, ativismo, bem-estar, para que não sejamos retratados apenas, como é até hoje na mídia, em pautas de gordofobia, de sofrimento, ou então aquele especial de moda plus size que sai uma vez por ano. Eu quero trazer esse público pra plataforma do Pop Plus pra circular esse assunto o ano todo, fomentar esse mercado.
Apenas para apoiadores 👉 No próximo Guia Paulicéia: 11 coisas para fazer em São Paulo antes que o mês acabe!