[Paulicéia 027] Clau Assef: "É fundamental olhar para os bens culturais da cidade sob uma perspectiva histórica"
A criadora da exposição "60 Anos de Discotecagem em São Paulo" comenta o significado da cultura DJ para a cidade
Tem uma coisa que você precisa saber sobre a entrevista de hoje: a entrevistada é a repórter, escritora, DJ, produtora e curadora paulistana Claudia Assef, minha amiga há uns bons vinte anos. É por isso que lá pelo meio do papo ela comenta que existe um crédito pra mim na mostra "60 Anos de Discotecagem em São Paulo", na Galeria do DJ Sônia Abreu, homenagem à primeira DJ brasileira, inaugurada por Clau em abril deste ano. Esse crédito é relacionado aos muitos (muitos!) flyers, zines, fotos e k7s que colecionei ao longo de anos e entreguei para ela em uma mudança de casa no passado. Nós temos esse passado em comum, de festas, pistas, música e fervos. Por isso, é normal que os personagens e cenários que ela comenta abaixo me sejam familiares. Talvez não sejam para você — tudo bem, tentei deixar links nas referências sempre que possível. E se você tiver (ou criar!) um gostinho pelo que estamos falando, fique de olho na programação da Galeria.
Como pintou a ideia da Galeria do DJ?
O que aconteceu foi que eu vi uma exposição em Nova York, sobre o começo da cena de hip hop. Mas era uma exposição pequena, uma sala do MoMA. E saquei que nossa, poderia ser o MoMA inteiro e voltei para São Paulo querendo fazer isso acontecer aqui. Era 2013, eu estava super envolvida nesse cenário, como DJ e jornalista focada em música eletrônica. Fundei uma associação, a Amigos do Museu do DJ, fui em várias agências de publicidade para tentar entender o que seria necessário para levantar fundos para um projeto desse tipo. Fui na Secretaria de Cultura, na época o Juca Ferreira era secretário de cultura e ele me recebeu, falou que a ideia era muito legal e me encaminhou ao nosso setor de museus. O pessoal de museologia também me recebeu muito bem, nós chegamos a fazer umas visitas técnicas, fiquei mais de ano em idas e vindas, fazendo reuniões. Cheguei a falar com André Sturm no MIS1, que me ofereceu uma sala. Cheguei a ter reunião com pessoal da Base 7, que faz o MASP, o Museu da Língua Portuguesa, coisas gigantes, para criar a expografia do museu. E uma hora parei, fui criar minhas filhas, fui trabalhar em outras coisas. Mas como formei essa associação, que tem o CNPJ até hoje, numa dessas idas e vindas encontrei o Alê Youssef e falei pra ele sobre o projeto. Aí em 2019, quando o Alê assumiu como secretário de cultura de São Paulo, ele me ligou dizendo que tinha um espaço na cidade que ele gostaria de repaginar e queria me levar para revigorar o espaço, como coordenadora. Era o Centro Cultural Olido, que fica em um ponto super agitado entre a Galeria do Rock e a rua Dom José de Barros, ponto importante da cultura hip hop, reggae e do pixo. Ele me deu carta branca para reformular conceitualmente a curadoria da Olido. Eu nem sabia qual era a proposta financeira, mas topei na hora. Nós montamos juntos o projeto da Galeria do DJ ao longo de um ano. Na prática a vontade de fazer o projeto vem desde 2013 e foi concretizado mesmo em abril de 2021.
Como foi planejar, montar e abrir um museu durante a pandemia?
Nós não abrimos para visitas regulares, de terça a domingo, como outros centros expositivos da cidade. Nós abrimos apenas em datas especiais para termos total controle da quantidade de público. Estamos fazendo várias aberturas especiais desde que inauguramos formalmente, em 28 de abril deste ano. Fizemos uma inauguração virtual, inauguramos a placa com o nome completo do museu, que é Galeria do DJ Sônia Abreu, uma homenagem à Sônia2. Estamos fazendo contratações artísticas de discotecagem, visitas guiadas e pequenas festas para até 30 pessoas, sendo que o ambiente ali comportaria (em tempos não pandêmicos) 100 pessoas. Essa é a nossa forma de agir com cuidado, porque é um espaço público da cidade.
Como foi o seu processo, ao longo dos anos, de reunir os itens que hoje estão expostos no museu?
Eu estou envolvida com essa cena há quase trinta anos, então conheço todo mundo. Foi um processo de fazer ligações, enviar emails, montar uma planilha com DJs, promoters, gente que já foi envolvida na cena DJ, gente clubber, performers. A lista é enorme. Além disso, eu já tinha herdado várias coleções de várias pessoas, a sua está lá, inclusive, você está nos créditos! Muitas coisas já tinham vindo para a minha casa antes, coisas de amigos que iam mudar de casa e não tinham mais onde guardá-las e vinham me oferecer para cuidar sabendo que em algum momento eu faria algo com elas. A Sônia Abreu mudou de uma casa grande para um apartamentinho e falou "traz uma Kombi porque tem um caminhão de coisas aqui!" Então eu já tinha um acervo que eu fui polindo, limpando. E as coisas que eu não tinha, fui ligando para as pessoas como o KL Jay e pedindo. Foi assim com uns cento e tantos nomes, montamos uma pequena equipe de produção que foi passando nas casas das pessoas, pegando, catalogando e limpando os materiais.
Qual a narrativa que vocês criaram para o espaço?
A exposição é um garimpão que obedece uma ordem cronológica. O espaço é dividido em nichos, por décadas. Os anos 1950 é o menor nicho, claro, porque foi o mais difícil de levantar itens. E vem até a década de 2010. A exposição se chama "60 Anos de Discotecagem em São Paulo", então não se pretende uma exposição de música eletrônica, mas também das cenas de reggae, hip hop, dub, e da cena mais comercial também. Nós partimos dos bailes black lá dos anos 1950. Tem toc -discos dos anos 60, tem o equipamento e um terno completo do Seu Osvaldo Pereira (o primeiro DJ do Brasil)3 lá de 1960 e bolinha. Tem itens do Alok, do Vintage Culture, mas ao mesmo tempo tem todo o começo da cena dark, tem muita coisa do Madame Satã4. Tem disco music pra caramba, muita coisa dos anos 70, dos bailes, muito disco de vinil, muitas roupas. A disco é muito especial pra mim, então dei uma caprichada.
Quais itens foram os mais difíceis de conseguir?
Tem coisa que foi bem difícil até de saber que elas existiam, como os gravadores de rolo. Gravador de rolo é uma coisa que não se empresta muito, mas fui atrás de alguns parceiros e acabei conseguindo dois. Mas ao mesmo tempo teve coisas que não são tão antigas, mas foram super difíceis, porque hoje a pessoa é tão famosa que preciso atravessar 100 pessoas para chegar nela. Por exemplo, tenho um óculos e uma camiseta do Alok que levei meses pra conseguir, porque não tem como chegar no Alok. Pede pro Daft Punk tirar a máscara, mas não chega no Alok. Aí bom, tem coisas dos anos 90, todos os zines que você possa imaginar estão lá, muitos objetos do Hell's Club5. As coisas do DJ Marky que estão na galeria são coisas que são minhas que estão assinadas pelo Marky, coisas do meu acervo. Porque as coisas dele tão na casa da mãe, ela teve Covid, depois ele teve Covid também e ficou no hospital por um tempo. Foram várias dificuldades desse tipo.
Tem algum item que você fala muito alto no seu coração, que você tem um carinho especial?
O mixer que foi construído pelo pelo Seu Osvaldo. Na verdade, é um pré-amp valvulado que ele construiu em 1958. Tem uma roupa de gala que meus pais usavam no Gallery em 1975, eu tenho um puta carinho e um orgulho enorme. Tem um Fender Rhodes do Gui Boratto. Tem o equipamento do KL Jay, que é o mixer e o toca-disco que foram corroídos por cupins e estão puro metal. Tem caixas de som da Sônia Abreu, caixas Gradiente enormes, intactas, novinhas. Tem o toca discos que o DJ Magal usou no Madame Satã e depois no Rose Bom Bom. Tem a fita VHS da inauguração do Club BASE6. Tem as primeiras demos que o Mister Sam fez com a Gretchen. Das raves, tem o primeiro pano da primeira Avonts,7 aqueles panos flúor maravilhosos, enormes, que serviam de decoração. Tem a câmera que o Fábio Mergulhão usou para tirar a foto lendária do Mau Mau no Skol Beats (abaixo), penduradinha ao lado da fotografia. Tem a bota que o DJ Rush usou para tocar na Circuito, com uma plataforma de 35 centímetros. O que me deixa muito feliz é a adesão muito forte, muito grande da galera de dois mil e tanto para frente. Tá lá um macacão com chinelo do L_cio, vários looks do Paulo Tessuto, várias coisas da Mamba Negra, da BLUM, da Vampire Haus, a jaqueta de campeão mundial do DMC do Erick Jay. E eu sei que cada item é especial para os seus donos, então nós temos muito cuidado com tudo, mantemos a segurança permanente, a limitação de público.
Por que é importante para a cidade ter essa memória registrada?
É fundamental olharmos sob uma perspectiva histórica para os bens culturais da cidade, especialmente quando ainda não são patrimônio cultural. Parece que o que tem importância é manuscrito do Machado de Assis, sabe? Algo distante. Às vezes, quando as coisas estão muito próximas, nós não enxergamos a importância e o valor delas, não enxergamos o legado. E isso é especialmente verdade para a classe DJ, tanto para os produtores da música eletrônica quanto para as muitas manifestações artísticas que estão no entorno do DJ: o hip hop, o dub, o reggae, o trap... Essa cultura ainda é considerada muito marginal, apesar de sabermos que é uma economia criativa gigante e importante para a cidade de São Paulo. As pessoas vêm para São Paulo querendo isso, atrás disso, consumindo isso. Então, colocar essa cultura em um museu transforma isso em legado, dá relevância. Quando a pessoa faz a visitação e vem dos anos 1950 até os anos 2000, ela enxerga que existe uma linha narrativa, que existem coisas que se complementam. Enxerga nos anos 1980 a revolta política das pessoas, isso está impresso nos flyers do Rose Bom Bom e Madame Satã, são todos em preto e branco. Daí a gente vai para os anos 1990, e começa a viver um momento de abertura, as pessoas mais acostumadas com a liberdade, tudo muito flúor e feliz. Está super na nossa cara e é muito interessante ver essa cultura ganhando importância.
Clau Assef indica destaques da programação da Galeria do DJ Sônia Abreu e mais umas coisas legais para fazer em São Paulo.
Geração perdida: a história do Madame Satã (São Paulo In Foco)
Os maiores hits de 22 clubs lendários de São Paulo (Music Non Stop)
De Trancoso a Atibaia: a história definitiva das raves no Brasil (Music Non Stop)
Gaia, eu vou parar de assinar a Pauliceia porque esta me dando altos gatilhos emocionais de estar longe de SP.
Muito legal, Gaía! Estava por fora e não conhecia esse projeto. Na minha próxima visita à São Paulo, irei com certeza.