[Paulicéia 041] Higor Advessunde: "A Vila Itororó começou a se revelar para a gente"
Gestor do espaço fala sobre o processo de transformar o conjunto arquitetônico no miolo do Bixiga em lugar de convivência do bairro
Microcosmo do Bixiga, a Vila Itororó impressiona quem chega ali pela primeira vez: nas margens da 23 de Maio, as colunas de um palacete em ruínas se erguem acima de muros de cimento sem acabamento, escadarias, uma piscina vazia, muros grafitados e um jardim que começa a tomar forma. É mais uma etapa na longa história da primeira vila de moradores da cidade, que já foi moradia de prefeito, cortiço, canteiro de obras e centro cultural e agora é área de convivência para pessoas de toda a cidade. Na edição de hoje, quem nos conta essa história é o gestor técnico do espaço, Higor Advessunde.
Quem é Higor Advessunde
"Em 2018, assumi a coordenação da Jornada do Patrimônio1, um evento cultural idealizado pela Nádia Somekh2, faltando apenas um mês e meio para a realização do evento. Tive apenas um mês e meio para executar o que estava posto, e depois comecei a trabalhar no projeto de gestão da Jornada do Patrimônio como um todo, um edital para democratizar o acesso das pessoas à participação nas atividades. Depois que conseguimos colocar os editais de pé, tivemos uma avalanche de inscrições de agentes da periferia, de mais gente preta e indígena. Em 2019 tivemos a maior edicão da Jornada, com mais de mil atividades, como o Grande Cortejo da Memória Paulistana3 e os cortejos regionais, com curadoria de grupos e coletivos de artistas. Foi nesse ano que a gente também ganhou um prêmio APCA4. Depois do trabalho de gestão do encerramento do projeto, em 2019, fui convidado a ir para a programação do gabinete, que é o setor que cuida dos grandes eventos culturais da cidade através da Secretaria Municipal de Cultura, que cuida da Virada Cultural, Mês da Consciência Negra, SP na Rua e outros. Fui convidado para coordenar o Aniversário de São Paulo 2020. O grande evento foi o Cortejo Modernista, uma pílula do que viria, ou virá, a ser a comemoração da Semana de 225. Em junho de 2020, fui convidado a retomar a coordenação da jornada, buscamos uma programação híbrida, com intervenções artísticas para o público transeunte, mas sem aglomeração. E tem uma ação muito emblemática desse momento: a reconstrução do Chafariz do Tebas6, com água potável, porque os moradores de rua iam ali para beber água. E tivemos uma ação de vídeo mapping na estátua do Borba Gato7, convidamos uma mulher preta, um coletivo periférico de pretos e um indígena para criarem uma intervenção simulando a demolição do monumento e a reconstrução do que poderia existir ali. Foi uma ação bem impactante e importante no contexto da arte urbana na cidade.
Chegada à Vila
"Em 2021, vim para a Vila Itororó por conta dessa experiência de valorização do patrimônio. O gabinete realocou alguns gestores para espaços culturais e observou a necessidade da Vila Itororó existir enquanto centro cultural. Parte do restauro e os apartamentos das residências artísticas [NE: que não são espaços de moradia] já tinham sido entregues em 2017 e 2019. Desde então a Vila ficou estagnada, com pensamentos do que poderia acontecer, algumas prospecções do próprio Departamento do Patrimônio Histórico, algumas ideias, mas sempre muito longe da prática. Porque faltava pensar o básico: como as pessoas vão entrar? O que vamos fazer com o entulho de obra? Como vamos arrumar o espaço? Como gestor, eu cheguei e fui arrumando, criando um planejamento, ouvindo quem já passou por aqui, como o Instituto Pedra [NE: organização que iniciou o restauro], entendendo quais eram os objetivos futuros. Porque primeiro a Vila é polo criativo e cultural da cidade,mas também tem a perspectiva de ser voltado para economia criativa. E como que essa ação de economia criativa pode acontecer? Estamos estruturando ideias para que isso seja colocado em prática em 2022, pensando nesses objetivos futuros. Comecei a olhar para esse espaço experimentando diariamente, andando por essas casas, abrindo e fechando as portas todos os dias, caminhando, sentindo como é difícil andar no paralelepípedo.
O restauro
"Começou em 2013. O Instituto Pedra fez o projeto de parceria com a prefeitura, com captação de recursos para essa primeira fase do restauro8. E eles também implantaram as primeiras propostas de centro cultural provisório no galpão, onde estavam instalados os engenheiros, pesquisadores e arquitetos. Ali começaram as primeiras atividades culturais e as visitas monitoradas ao canteiro de obras do projeto "Vila Itororó: Canteiro Aberto"9. A desapropriação da Vila Itororó pra fins culturais começou em 2008 e terminou em 2012, quando saiu a última família10. O Instituto Pedra viu aqui a oportunidade de trazer um projeto significativo para a cidade, porque a Vila Itororó tem muitas particularidades: é a primeira vila urbana da cidade, tem um histórico de como e por que foi construída, é um registro da época da modernização da cidade, foi feita com material de refugo de outras obras11. Conta muita história da construção da cidade, fala sobre moradia, de como as pessoas viviam e vivem aqui. Muitas pessoas que moram na periferia ou no interior procuram uma casa ou um quarto no centro, para morar perto do trabalho. Eu sou uma dessas pessoas, vim de Auriflama, do lado de Araçatuba, uma cidade de 15 mil habitantes, e depois que cheguei em São Paulo eu alugava um quarto em casa de família, uma pensão, para morar no centro, perto do trabalho. Tive essa experiência por muitos anos. Então eu me conectei com essa história, e muita gente pode se conectar com a Vila Itororó também.
Pandemia
"Quando chegou a pandemia, a Vila estava com programação no galpão e com atividades no espaço do centro cultural provisório. Parou tudo, como todos os espaços públicos, até fevereiro de 2021, quando teve aquele momento em que os espaços podiam abrir por determinado tempo do dia. Mas sem atividades, a gente só abria as portas do galpão e as pessoas circulavam. Era apenas 25% do público, sem eventos. Aí voltou de novo, durante a fase roxa, em abril, e depois fechou tudo de novo. Eu já estava aqui como gestor, já estava em atuação para limpeza do canteiro de obra, com uma empresa de restauro, foi um trabalho de seis meses. Tiramos uns bons 20 e tantos caminhões grandes de entulho. Foi quando a gente decidiu não abrir mais o galpão e focar na abertura de fato da Vila Itororó. Porque chegou um momento que tinha que tomar essa decisão, a gente estava fechado porque a pandemia não estava permitindo. A partir de então começamos a focar na vila, e quando começamos a tirar os entulhos e o canteiro de obras, a vila começou a se revelar, a gente começou a entender a quadra, que agora é um espaço de convivência aberto. Estamos recebendo os ensaios da Vai-Vai, por exemplo, todo final de semana.
O espaço hoje
"Agora está aberto. Estamos entendendo as necessidades do público, como a sinalização, que precisa melhorar. Só no final de semana, sem nenhum evento anunciado, a gente recebe umas três mil pessoas durante o dia. Isso mostra o interesse que as pessoas têm na Vila Itororó. Tenho feito um esforço para chegar a um entendimento de todos esses públicos. Têm o ex-morador que quer vir e matar a saudade. Tem um ex-morador que saiu na época da desapropriação, mas tem morador que saiu há muito tempo. Esses dias eu encontrei com uma família, da Dona Maria da Conceição, que era a costureira da Vila e morou 40 anos aqui. Ela saiu em 98, dez anos antes de começar o projeto de desapropriação, a família dela saiu toda antes. E elas visitaram, entraram na casa onde moraram, uma das casas que não estava ainda com atividade acontecendo, foi lindo. É uma família de mulheres pretas, de todas as idades, e elas falaram ainda que vão trazer a máquina de costura da Dona Maria da Conceição para a Vila. A gente vai fazer um projeto museológico pra isso, para contar essas histórias. Também tem o público que vem apreciar, que vem ver como estão ficando os restauros. Estudantes, pesquisadores, fotógrafos que vêm para tirar fotos. E tem o público do bairro, as famílias que descobriram na Vila um parque, que vêm passear com os cachorros, com as crianças, fazer piquenique e passar o dia descansando. Tem gente que vem usar a internet, sentar numa mesa pra trabalhar. Tem um público que vem em busca dos nossos serviços: o FabLab, que é o laboratório de arte e tecnologia, e o Centro de Referência da Igualdade Racial, que também presta serviços. São braços da SMIT (Secretaria de Inovação e Tecnologia) e da SDH (Secretaria de Direitos Humanos), que estão na Vila no momento. E tem um público que vem para os eventos, shows e apresentações, gente que até entende a vila às vezes como um bar, como baladinha. Mas a Vila tem horário para fechar. A gente marca os shows noturnos para 20h e fecha às 22h, o horário padrão de todos os espaços públicos, por conta de som e tudo mais. A gente tem uma programação regular de shows no jardim, tem cinema, tem shows especiais dentro da piscina vazia, e alguns nas ruínas. A ideia é explorar todos os espaços. Em novembro, todos os finais de semana têm programação especial de valorização do Mês da Consciência Negra.
O Bixiga
"A Vila está num local de fácil acesso, no Centro, mas é um lugar periférico. Sempre foi. Eu entendo o Bixiga como um bairro periférico no Centro de São Paulo. Eu moro perto do Anhangabaú e para vir pra cá eu passo pelo miolo do Bixiga, pela Major Diogo, Conselheiro Carrão, e é muito periferia. A estética, as pessoas, o jeito de viver. É boteco, as pessoas fazendo churrasco na calçada, algo que você não vê ali pra cima, perto da Paulista. O Bixiga foi ocupado pelas ondas de imigrantes, e a história preta do bairro foi apagada12 por essa ideia de bairro italiano, assim como a Liberdade foi transformada em bairro japonês por conta da ocupação dos imigrantes japoneses, mas apagando a história dos pretos que de fato dá o nome à Liberdade. Tem bastante disso, muita gente chega aqui na Vila com essa perspectiva ‘ah, aqui era uma vila de italianos, né?' Não, não tem nada a ver. As pessoas têm essa ideia de que era uma vila italiana, ou que o Bixiga é um bairro italiano. Tem um filme agora no Netflix que conta um pouco disso, da história do Bixiga. 'Mas não foram os italianos que construíram?' Não, foi um português. Na época da inauguração morou um prefeito no Palacete, as outras casas eram de aluguel. O Palacete é a cereja do bolo, mas não define a vila. Ela a casa do dono, foi ornamentado e criado pelo próprio Francisco de Castro, depois foi sendo repartido, cada andar foi repartido para várias famílias. Aqui sempre morou gente de classe baixa, eram casas de aluguel, não era um lugar para pessoas ricas. Muitas famílias pretas moravam aqui.
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Três filmes sobre a história do Bixiga
“Bixiga Existe”, documentário interativo feito coletivamente, “um mosaico de visões de apaixonados pelo bairro".
“Um Dia com Jerusa", na Netflix. No bairro do Bixiga, uma mulher abre as portas de sua casa para uma desconhecida. e as duas passam a repartir suas histórias de vida.
“Helen", de 2020, baseado em personagens reais, mostra a rotina de quem vive nos cortiços do Bixiga.
Na edição de quarta-feira, só para apoiadores, Higor fala mais a fundo sobre os diferentes espaços físicos da Vila Itororó.
Fotolivro Jornada do Patrimônio 2019 (Prefeitura de São Paulo)
Chafariz do Tebas (Jornada do Patrimônio 2020)
Vila Itororó: projeto de restauro (Prefeitura de São Paulo)
Vila Itororó: Canteiro Aberto (SESC SP)
Vila Itororó se torna centro cultural (A Vida no Centro)