[Paulicéia 022] Izadora Ribeiro: "A necessidade não é só comida e roupa"
Para a chef paulista, que criou o Isla Café e a Cozinha de Combate, período da pandemia tem sido "de se reinventar a cada dois meses"
2020-21 foram dois anos e tanto para Izadora Ribeiro. A chef, conhecida pelo Isla Café, em Pinheiros, viu a pandemia transformar seu restaurante em centro de arrecadação e distribuição de insumos e marmitas, e seu trabalho como chef se dividiu em dois projetos: Por Nossa Conta e Cozinha de Combate1. No papo abaixo, gravado em um restaurante da Vila Madalena em agosto passado, Iza fala sobre sua capacidade de adaptação pandêmica – e o que será depois.
Gaía Passarelli - Como era o trabalho do Por Nossa Conta antes da pandemia?
Izadora Ribeiro - Eu já fazia parte de um grupo chamado Por Nossa Conta para levar marmita para pessoas em situação de rua. Isso é pré-pandemia. Nessa época, as cozinheiras eram eu, a Cafira (chef do Fitó) e o Thales Peixe, que tinha acabado de abrir o Elevado Bar, onde a gente cozinhava. Tinha mais pessoas, umas 20. A gente fazia umas 150, 200 marmitas. E nisso a pandemia começou, e ficamos nessa dificuldade do "e agora?", sem saber se iríamos contaminar as pessoas, se usava luvas, se usava máscara, como funciona. Era tudo muito incógnito. Decidimos dar um tempo e ver como resolver. Começamos a procurar frentes para poder atuar sem colocar a mão na comida, a arrecadar mantimentos, produtos de limpeza, álcool em gel. A gente arrecadava dinheiro para comprar esses insumos todos e também arrecadava doações. Começamos a trabalhar com o projeto Mulheres Paraisópolis, com o Padre Júlio Lancellotti e com a Associação Franciscana.
Como o fechamento do Isla, seu restaurante em Pinheiros, gerou o Cozinha de Combate?
O Isla virou o centro de arrecadação de doações do Por Nossa Conta. O restaurante tinha um deck que ficava lotado com caixas de produtos de limpeza, comida, tudo que a gente recebia. Começamos a identificar o que podia e que não podia, a entender que dava para cozinhar com cuidado. Aprendemos junto com o Mulheres de Paraisópolis2, os freis, o padre Júlio Lancelotti. A gente também começou a ver o foco, onde estavam as pessoas precisando de comida. E aí eu e Marcos, meu marido, montamos o Cozinha de Combate. A ideia era usar o restaurante e os funcionários, que estavam ociosos, e continuar a arrecadar dinheiro para pagar as pessoas, comprar os insumos, sempre com foco em pequenos produtores, para eles não perderem a plantação. Levamos essas comidas para os lugares que essa galera ajudou a gente a mapear. Lançamos a campanha no Instagram em 31 de março de 2020. Nessa primeira fase foi só o Isla, mas repercutiu na hora, no dia em que lançamos o vídeo as pessoas já começaram a doar. Começamos logo no dia seguinte, com metas de 120, 150 marmitas por dia. A gente levava para os freis e para as Mulheres de Paraisópolis, porque elas já não davam conta da quantidade de pessoas necessitadas que apareciam diariamente em Paraisópolis3. Elas começaram fazendo 700 marmitas e no final do ano passado estavam fazendo sete mil. A gente levava as marmitas um dia para Paraisópolis e um dia para os freis. Mas a demanda dos freis também começou a crescer pra caramba, no jantar, e nós aumentamos, conseguimos chegar a 300 por dia. Ficamos um mês e meio fazendo isso diariamente. Chegamos em um momento em que tivemos que entender duas coisas: a necessidade sempre existe, as pessoas continuam com fome, cada vez mais, porém a arrecadação da nossa campanha já tinha atingido e até ultrapassado a meta. Tínhamos conseguido pagar todos os funcionários, todos os fornecedores, zerado as contas. E aí a gente entendeu que, para voltar, precisávamos de um plano novo, de mais gente. Essa primeira fase foi até maio, e aí parou. Até começar de novo, passou mês e pouquinho, para planejar a segunda fase, entender se íamos distribuir nos mesmos lugares, o que a gente poderia fazer maior, como atender mais pessoas de uma maneira mais completa. Tivemos a ideia de fazer um centro de distribuição. O Por Nossa Conta continuava a mil, mas arrecadando também pelo Cozinha de Combate. Foram dois projetos paralelos. A gente tem um amigo que tem um estacionamento ali ao lado Teatro São Pedro, na Barra Funda, e ele nos emprestou para, durante um mês, criarmos um centro de distribuição. Era perfeito porque era aberto, com uma parte coberta nas vagas dos carros. Aí, pra gente aumentar a quantidade de marmitas, precisaríamos de parceiros, né? Então fomos atrás de vários restaurantes e três toparam: o Corrutela, o Pitico e o Cais. Outros não toparam por medo. Medo de não arrecadar o dinheiro necessário e ficar no prejuízo. Isso é muito louco, mas era essa a maior fala, medo de ficar no prejuízo. E medo também de não dar conta de fazer tudo, porque os restaurantes estavam abertos. Dos que entraram, o Cais e o Pitico estavam fechados, e o Corrutela estava fazendo só delivery.
Como foi o funcionamento nesta segunda fase?
Eles toparam e nós dividimos: cada restaurante faria 150 marmitas por dia. Nesse espaço na Barra Funda, o Por Nossa Conta tinha uma baia e o Cozinha de Combate tinha outra. Algumas marmitas a gente destinava para outros lugares, como uma amiga que fazia um projeto com a Casa Branca de Luz, um centro espírita no Largo do Arouche. Deixávamos 50 para ela. A gente levou para as reservas indígenas no Pico do Jaraguá. No Por Nossa Conta, continuamos recebendo doações de produtos de limpeza, kits de higiene pessoal e roupas. A gente organizava por dias, toda sexta-feira entregava roupa, toda terça entregava kit de higiene pessoal. E ajudávamos nos cadastros dos auxílios, ajudar a pessoa a entender como fazer um documento, como vai no Poupatempo, emprestava telefone. Esse período também durou um mês e pouco, lembro que acabamos estendendo a campanha para os sábados, mandando sempre para a Ocupação Mauá, para a Ocupação 9 de Julho. Entregamos mais de 17.000 marmitas e conseguimos manter os empregos dos restaurantes envolvidos, pagar contas básicas, como luz, água, aluguel, pagar os funcionários.
E por que vocês decidiram encerrar esse segundo momento ?
De novo pelo mesmo motivo: o Por Nossa Conta continuava a toda, mas as arrecadações estavam caindo. A gente sentiu isso, que as pessoas não estavam se envolvendo mais, como se a pandemia estivesse começando a passar batido. As pessoas começaram a achar que agora liberou, caiu o número de mortes, o que é uma loucura, mas foi assim.
O que aconteceu com o Isla depois que vocês encerraram essa segunda fase?
Resolvemos voltar e reabrir como delivery. Não estávamos confortáveis para receber as pessoas, por vários motivos. Tanto na questão de estrutura, de adaptar o restaurante, quanto economicamente. Porque a gente tem que falar dessa parte, né? Não é tudo lindo, "ai, que bonito o que eles fizeram", tem o lado financeiro também. Tem uma estrutura ali, com gente contratada na Carteira de Trabalho, imposto pago, tudo isso. Fizemos as contas e decidimos fazer delivery. Eu estava zero confortável em receber pessoas, e restaurante para mim é isso. Você estar confortável, estar sem medo. Todo mundo meio tenso, isso tira completamente a alegria da restauração mesmo, no sentido de trazer alegria. Aí também entra a comida do Isla Café, que não fazia sentido no delivery. O menu do Isla Café tinha umas pitadas mexicanas, era uma comida muito feita para aquele deck ensolarado, para ser dividida, muita coisa fresca que na caixinha não ia ficar legal. Aí decidimos fazer um oriental, um asiático diferente mas que continuasse com o frescor do Isla Café, com muitos vegetais que coubessem dentro das caixinhas biodegradáveis que a gente tem. Fiz uma pesquisa e criei um apanhadão de comida indiana, vietnamita, cambojana, chinesa, japonesa, um grande fusion. Em finais de julho do ano passado lançamos o Isla Oriente, que era o projeto de delivery. Ano passado foi de precisar se reinventar a cada dois meses.
O Por Nossa Conta continua?
Continua! Eu dei uma segurada, mas o projeto continua firme e com vários projetos legais. Eles arrecadaram um monte. As pessoas envolvidas no projeto conhecem muita gente, então conseguem parcerias e divulgações, atinge bastante gente.
Você é uma mulher branca, privilegiada, empresária, dona das suas coisas. Quando entrou na sua vida esse ímpeto pelo trabalho voluntário? Foi com o Por Nossa Conta ou fazia antes?
Vinha de antes. Eu tinha um projeto chamado Vamos Jantar, bem parecido só que pequeno, coisa de dez pessoas e meio esporádico. A gente se reunia uma vez por mês, ou a cada dois meses, para fazer cerca de 150 marmitas na casa de uma amiga e distribuir. Eu sempre fui bem ligada à questão do desperdício de comidas, é uma coisa que sempre me pegou. Vendo essa fome doida na cidade inteira, no país inteiro, quis fazer alguma coisa com a questão do desperdício. Não só comida do restaurante, mas de supermercado, de alimento feio que não passa na triagem. Aí, conversando com uma amiga, decidimos fazer um projeto. Em 2017 a gente fez o primeiro Vamos Jantar com essa ideia de trabalhar com desperdício, alimentar as pessoas em situação de rua. Para distribuir, a gente colocava no isopor, carro, parava no posto do Largo do Arouche, levava umas cadeiras e distribuía as marmitas. Muitas vezes a gente levava roupa também. E a gente conversava bastante com as pessoas, não era só entregar marmita, muitos contavam a história de vida inteira.
Existem muitos e entidades organizadas para diminuir o sofrimento da população desabrigada de São Paulo. Essas são algumas com as quais você pode contribuir:
Agência Popular Solano Trindade
Associação Cultural Franciscana
Governo entrega doações a 16 entidades que atendem população em situação de rua (Governo de São Paulo)