[Paulicéia 051] Karen Cunha: "As pessoas estavam falando sobre o futuro sem constrangimento "
A produtora cultural que ajudou a criar o Mês da Cultura Independente e SP na Rua fala sobre as perspectivas do fervo em São Paulo
Karen Cunha, 40 anos, paulistana, se apresenta como "agitadora cultural, consultora, gestora e uma série de coisas aí". Faz sentido. Conhecida de quem produz eventos em São Paulo, Karen é uma dessas pessoas que está sempre em movimento, e durante mais de uma década esteve dentro da Secretaria de Cultura, gabinete que abandonou após a Virada Cultural de 2017 – mas que lhe deu um olhar privilegiado de como as coisas funcionam (ou deixam de funcionar) na cidade. Em 2021, junto com um grupo de pessoas ligadas à noite de São Paulo, Karen criou a Fervo Conference, evento online que reuniu entusiastas "do fervo" para falar sobre o presente e o futuro das festas e casas noturnas da cidade.
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Secretaria de Cultura
"Comecei como estagiária na Coordenadoria da Juventude, durante a gestão da Marta Suplicy. Quando a Marta perdeu para o Serra, eu fiquei para fazer a transição de governo, e acabei ficando por quase treze anos. Sempre acontecia algo e eu me via em uma situação em que não tinha como virar as costas e falar tchau."
A Coordenadoria da Juventude1 ainda existe em outro formato, ligada à Secretaria de Participação e Parcerias, criada pela gestão Serra, e em agosto de 2021 fez a Semana das Juventudes2 com eventos online, saraus, batalhas de hip hop, debates e outras intervenções culturais.
Dentro da Coordenadoria, durante a gestão Serra, com a então coordenadora Luciana Guimarães, Karen ajudou a desenvolver um projeto para o então chamado "Esqueletão do Jânio", uma herança nunca usada da prefeitura de Jânio Quadros, na Zona Norte da cidade, que se tornou o CCJ, Centro Cultural da Juventude, na Vila Nova Cachoeirinha. Foi a partir da programação do CCJ que São Paulo ganhou o Mês da Cultura Independente3, uma programação extensa de shows, saraus, lançamentos, filmes e mostras de arte fora do circuito estabelecido.
"O CCJ tinha uma coisa de estar conectado com a cidade. Eu não sei se ainda existe hoje um lugar tão centralizador, no sentido de fazer as pessoas saírem do centro e irem até a periferia, a gente levava isso muito a sério. Essa circulação tem que acontecer."
A partir da bem-sucedida experiência com o CCJ, Karen foi convidada a assumir uma editoria de programação da cidade, criada durante a gestão de Fernando Haddad. "Era uma coisa de projetos especiais, de olhar para a programação, organizar um circuito. Foi daí que surgiu, por exemplo, o SP na Rua”, uma reunião de coletivos de festas independentes de São Paulo, principalmente de música eletrônica, ocupando vários palcos no Centro, e que não acontece desde 2018.
Virada Cultural
A chegada do Juca Ferreira como Secretário de Cultura em 2013 também foi oportunidade de refazer a Virada Cultural. "Foi criada uma curadoria colegiada, a primeira Virada do Juca, em 2013, tinha 13 pessoas na curadoria e eu estava ali, recém chegada ao gabinete do Secretário, entendendo, conhecendo."
A história profissional da Karen é muitas vezes a mesma história da gestão cultural de São Paulo, inclusive no contexto de dois de seus maiores eventos públicos: a Virada Cultural e o Carnaval de rua.
"Naquele momento, diferente de todos os outros anos, você não tinha mais Governo do Estado e Governo municipal do mesmo partido, alinhados." Na época, o PT de Haddad precisava dialogar com o PSDB de Geraldo Alckmin. "Gestão de evento público é uma coisa maluca, seu fornecedor de segurança é a Polícia Militar, o seu fornecedor de limpeza é a AMLURB, então você depende muito de uma parceria entre os órgãos responsáveis."
É nesse momento que a Virada é alvo de críticas, principalmente por causa da onda de violência, com arrastões e roubos, nas edições de 2013 e 2014.
Quando você está fazendo um evento na rua, ele reflete o que é cidade naquele momento.
“A Virada de 2013 foi a pior em termos de violência, foi um negócio assustador. E foi muito louco porque foi a primeira vez que teve um palco de funk. E naquele momento tudo que acontecia de ruim jogavam a culpa no funk. A cidade estava vivendo um clima geral de indignação, tava tudo muito tenso. Esse problema só começou a se resolver em 2015, foi uma Virada bem estranha, com muita presença de polícia, e também foi a mais vazia porque as pessoas estavam morrendo de medo. E depois, na Virada de 2016, foram apenas três ocorrências no Centro inteiro, sendo que uma delas não foi relacionada diretamente ao evento. Foi minha última Virada como coordenadora."
Carnaval de rua
Em 2016, Karen já queria se desligar do trabalho como coordenadora da Secretaria de Cultura, que considerava "um casamento". Mas teve que esperar. "Se eu fosse embora não teria Carnaval de rua. Porque não tinha, naquele momento, ninguém com experiência que soubesse lidar com o Carnaval de rua.”
Coordenar Carnaval de rua é uma loucura. Porque como você organiza o inorganizável? Mantendo as suas características.
“O Carnaval é uma manifestação espontânea, ela não é como a Virada, que alguém fez uma programação. O Carnaval acontece. Eu entendi que se virasse as costas, não teria ninguém para fazer esse trabalho, porque todo mundo que tinha trabalhado um pouco na coordenação do Carnaval foi embora."
Decidida a ficar, Karen acabou tendo seu melhor Carnaval. "Tinha uma coisa super legal: como as pessoas não sabiam de nada, elas tinham que me ouvir. E o Dória já tinha pesquisa logo nos primeiros dias de janeiro de 2017, ele sabia do que a população gostava e não gostava. Então ele sabia que o Carnaval é muito importante pra cidade, que tinha que estar tudo certo. Um discurso tipo: eu invisto nisso porque sei que é uma coisa que a população aprova. E aí foi um Carnaval ótimo, foi gigante, em que as coisas deram certo."
Saída da Secretaria
Apesar de prometer ficar apenas para o Carnaval, Karen acabou ficando até agosto de 2017, o ano em que a Virada Cultural se descentralizou4. "Fui descansar. Descansar de verdade. Eu estava muito cansada. Fiz um empréstimo e falei: vou ficar sem trabalhar um ano, entender o que eu sou, o que eu gosto de fazer. Precisava me dar a oportunidade de saber se essa coisa que eu trabalhei desde sempre é mesmo o que eu quero fazer. E aí fui pro Rio de Janeiro, passei um ano olhando pôr-do-sol , andando na Lagoa, sorrindo, ouvindo Moacir Santos. Eu achava que iria trabalhar numa empresa assim que acabassem essas férias, em nenhum momento passou pela minha cabeça ter a minha própria empresa. Mas começaram a surgir coisas como consultorias e curadorias."
A empresa de Karen se chama Flerte, e ela abriu para poder cumprir essas demandas. É seu trabalho até hoje: programação, curadoria e consultoria para projetos de cultura.
"A Flerte se abriu sozinha. O nome acho que é isso: a gente não casa mais, a gente só namora, uma consultoria é assim, a gente tá super junto agora, mas não vai casar necessariamente, a gente vai continuar flertando. E daí rolou. A primeira coisa que eu fiz foi um show em homenagem à Rita Lee5. Mas a Flerte mesmo, batizada com esse nome, foi quando a gente fez um show do Paulinho da Viola no aniversário de São Paulo6, e umas festas que chamei de SP no Vale, no Anhangabaú. "
Março de 2020
"2020 era um ano em que eu estava com o planejamento fechado. E aí foi isso: tá, acabou, não perspectiva de ter alguma coisa. Na pandemia eu fiquei louca no primeiro dia. Imagina, morando sozinha no Centro.”
Tem imagens que vão demorar para sair da minha cabeça, tipo a Praça da República vazia, não passava um carro na Avenida Ipiranga.
“Aquilo me perturbou muito. Eu fiquei trancada dentro da minha casa, não saía para nada, nada mesmo, minha primeira saída foi em outubro de 2020."
A Fervo Conference
A Flerte e a experiência anterior com eventos de rua acabaram dando no principal projeto de Karen durante a pandemia: a conferência digital Fervo Conference, que em outubro de 2021 reuniu dezenas de DJs, músicos, produtores e empresários da noite de São Paulo para discutir "o futuro do rolê".
"Teve uma coisa que me deixou com muita raiva no começo da pandemia, tanto que me afastei muito das discussões públicas sobre o assunto, em especial a galera da música, que era um discurso meio otimista. Recebi um daqueles relatórios de tendência dessas agências de futuro falando que 'as pessoas vão consumir com mais consciência, porque as pessoas agora vão se conectar'. Isso me deixava com ódio mesmo. Tipo, vocês estão loucos, eu não sei em que mundo vocês vivem, mas eu conheço gente que tinha uma vida classe média e que agora não tem onde morar, sabe? Todos os dias ouvindo pessoas da noite que em um dia eram donas do próprio negócio e quatro meses depois, pagando o salário de todo mundo sem nenhuma receita, não tinham mais nada. Comecei a ficar muito desesperada com isso, sabia que tinha que fazer alguma coisa, e sabia que tinha que ser eu, porque eu tenho uma coisa de falar com pessoas distintas, transito bem em diferentes rolês. Então em 2020, no meio daquilo tudo, a coisa que eu mais queria fazer era a Fervo."
Foi um processo longo, não só no sentido de conseguir financiamento, que saiu via Lei Aldir Blanc, mas para encontrar o tom e o assunto corretos. "Toda hora mudava a conversa. Demoramos para achar o tom certo, até que, enfim, criamos uma comissão curadora7. Também foi engraçado ver essa comissão no dia a dia, porque quando começou todo mundo estava naquela energia de ‘meu Deus, não há nenhuma perspectiva’, não existia nem ideia de vacina. Aí, depois, tinha vacina, alguém aparecia contando que conhecia alguém que já tinha sido vacinado em outro país.”
Todo mundo teve um momento de sumir, de estar muito deprimido para falar sobre festa. Foi muito emocional, muito difícil.
"O primeiro escopo da Fervo era criar uma conferência para ajudar todo mundo a ganhar algum dinheiro para sobreviver e não morrer de fome. Pensamos em palestras sobre direitos autorais para ensinar os DJs a recolherem, lidarem com streaming. Aí depois mudou um pouco: vamos falar sobre as cenas de fora e o que deu certo e não deu certo, sobre eventos híbridos, realidade virtual. Até que chegamos no que foi a Fervo mesmo, que foi um momento de reabertura, em que não era mais de mau gosto falar de festa." A conferência só começou a fazer sentido e encontrar um discurso coerente quando bares voltaram a abrir e alguns eventos começaram a acontecer, ainda que com muitas restrições. "Existia muito medo de fazer um evento de mau gosto. As pessoas estão morrendo, olha a rua como está, e a gente aqui falando de festa, entende? Mas alcançamos um momento em que todo mundo, e eu também, se sentia mais confortável para falar sobre isso. E aí a Fervo aconteceu e foi ótima, muito melhor do que a gente esperava. Não teve nenhuma live vazia. As pessoas abraçaram a ideia mesmo."
Chegou um momento em que as pessoas estavam falando sem nenhum constrangimento sobre o futuro.
"Teve uma coisa muito doida, essa parte da noite que é bem menos institucional, a galera do underground, dos espaços independentes, os lugares que não são clubes, que são festas de rua, de galpão, essa galera foi a primeira galera a parar, a assumir que não ia fazer festa, não ia botar as pessoas em risco. E as pessoas cobravam, queriam festas! Mas esse setor foi muito responsável. E se fodeu, ficou sem nenhum real, mas não colocou as pessoas em risco. Então ali na Fervo também tinha uma coisa de que em nenhum momento a gente ia fingir que nada estava acontecendo. Eu tive uma conversa com o Lucas Zanandres, que é biomédico e falou sobre redução de riscos em espaços públicos8, que me deixou mais tranquila. Foi a primeira vez que alguém me falou: olha, calma, você pode ir no mercado. E quando rolou a Fervo todo mundo já estava tomando a primeira dose, estava todo mundo mais otimista. Mas com um otimismo consciente."
Esse clima de reencontro, ainda que virtual, de troca de informações entre diferentes núcleos e cidades, de busca por uma retomada que não colocasse as pessoas em risco, foi a tônica dos cinco dias de conferência. "A Fervo trouxe essa noção de que a gente é uma comunidade. A primeira mesa do evento tinha o (produtor musical) Daniel Ganjaman, o (DJ e produtor de eventos) Paulo Tessuto, e a Stefânia Gola, representante do Ó do Borogodó (tradicional casa de samba que fechou as portas em 2021). Em 2019 essas pessoas não tinham nenhuma conexão entre si, mas em 2021 somos uma comunidade. Essa noção de comunidade, para mim foi a coisa mais importante da Fervo."
A Fervo Conference não é única no mundo. Existem outros seminários sobre noite, clubes e festivais em cidades como Amsterdam e Berlim. O que torna São Paulo especial?
São Paulo tem festa de rua, tem Carnaval, tem bar, tem shows, tem festivais. Então acho que existe algo mais do que a noite aqui. Essa coisa é o fervo mesmo.
Existe também uma percepção de que a pandemia mudou a noite de São Paulo para sempre, mas ainda é cedo para dizer como. "O pior que pode acontecer é a gente não aprender de verdade nada com isso. Uma coisa que eu levo muito sério é o aprendizado: deu uma merda, o que a gente aprendeu com essa merda? Meu medo é que as pessoas voltem piores. Se a gente não tomar cuidado, não fizer tudo com muita consciência, essa comunidade vai piorar demais."
Fervo Conference em 2022
Karen conta que a busca por apoios e as conversas para a Fervo Conference 2022 já começaram, mas ainda não há uma data certa, a perspectiva é que seja um evento híbrido presencial e online, com mais representação do Brasil. "Acho que tudo vai ser meio misto daqui por diante, no sentido de que é muito legal você ver alguém fazer uma pergunta de Belo Horizonte, depois alguém dar uma resposta em Manaus. A coisa da transmissão é bem interessante e veio para ficar. A gente não teria trinta pessoas num sábado à noite numa sala assistindo a uma mesa presencialmente. E no Youtube tinha, sei lá, pelo menos sessenta pessoas. A Fervo aconteceu num momento em que as pessoas já estavam na rua, já estavam podendo ir em bar, e escolheram estar ali, em casa, assistindo à Fervo e discutindo com o pessoal. E fomos bastante paulistanos na programação, porque não dá para ter a pretensão de abarcar tudo que acontece no Brasil todo. A ideia também é abrir aos poucos, do micro pro macro."
Apenas para apoiadores do Paulicéia: as festas presenciais estão acontecendo, e vão continuar. Como DJs e produtores de eventos estão encarando a situação?