[Paulicéia 053] Paulinho Fluxuz_: "Do terraço de um prédio na Cracolândia se vê céu e inferno ao mesmo tempo"
O artista e ativista cultural fala sobre a vida na Cracolândia durante a pandemia.
Onde você estava no auge da pandemia? Paulinho Fluxuz_ estava morando no coração da Cracolândia. Mas não da forma que você está imaginando. Artista e ativista de direitos humanos, ele estava vivendo na cobertura de um edifício antigo da região da Praça Júlio Prestes, com uma vista privilegiada – “uma visão panorâmica das zonas Norte e Leste, com lateral para a Alameda Cleveland”. Um lugar privilegiado também para continuar o trabalho artístico que vem desenvolvendo desde a década passada: a projeção de mensagens com raio laser sobre a cidade.
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Formado em artes plásticas, Paulinho atua há mais de dez anos fazendo iluminação de bandas e eventos. Quando passou a usar luz laser como suporte para suas mensagens, passou a pensar intervenções na cidade. "Fui fazendo mais por minha conta. Meu interesse em artes visuais sempre foi de pensar intervenções que tenham relação com movimentos sociais, ao invés de pensar produções para dentro do cubo branco de galerias ou da caixa preta dos teatros. A chegada da pandemia foi o momento de comunicar para a cidade. As pessoas estão nas suas casas, como é que a gente as alcança? É direto nos prédios, é através das comunicações digitais?”
A chegada da pandemia
Quando começou a pandemia, Paulinho pegou seu o laser e foi projetar na cidade já fazendo uma crítica ao governo, com projeções como "Fora Coronaro” e "Presidente Evil”, que se espalharam em redes sociais. “O Bolsonaro tinha feito o pronunciamento de que aquilo era 'uma gripezinha'1. Qualquer tentativa de combate ao vírus ele ia em cima. O caos acontecendo, nenhum controle nenhum de quem entrava no Brasil, sem coordenação nacional. E eu sem nenhum trabalho para tentar amenizar essa situação, sabendo que isso ia se propagar.”
Como todo mundo que trabalha com cultura e eventos, Paulinho viu sua fonte de renda deixar de existir de um momento para outro. "Todos os trabalhos que eu tava programado para fazer foram cancelados. Em março de 2020 ia fazer uma projeção de laser dentro da Catedral da Sé, junto com uma orquestra e o Coral Luther King2.” O adiamento e cancelamento da Virada Cultural3, em 2020, também mostra o quanto a pandemia impactou pessoas que vivem de projetos culturais. “Fui convidado pela Virada Cultural para pensar uma obra de laser para a cidade e desenvolvi três. A Prefeitura escolheu uma delas como a principal daquela edição da Virada. Era um projeto gigantesco com Juçara Marçal, Ná Ozzetti, Guilherme Held e uma turma maravilhosa da música, a Elza Soares tinha topado participar gravando uma das músicas que seria cantada para a cidade. Aí, em cima da hora, a Virada Cultural falou que eu teria que redesenhar o projeto, adaptar o orçamento. Eu reduzi, redesenhei, fiz todo o trâmite e tudo parecia que estava caminhando, e de repente a Virada foi pro final do ano. As incertezas todas no ar. E aí, três semanas antes da data marcada, foi cancelada.”
Isso foi em 2020. Mas essa mesma incerteza em relação a eventos privados ou públicos continua pesando nos ombros de quem trabalha com cultura em São Paulo, como prova a recente onda de adiamentos e cancelamentos de shows e peças de teatro.
"Muita gente pensou, e eu também, que ia voltar até o final do ano. Mas fomos entendendo também que a volta seria gradual. As pessoas falando ‘ah, a primeira festa depois da pandemia…' Gente não vai ter a primeira festa, vai ser gradual, vai ser um processo, a gente vai ter que inventar. Ficou muito claro que com a pandemia seria difícil voltarmos a fazer nas mesmas proporções de antes." Seria preciso reinventar a forma de trabalhar, o que no caso de Paulinho significaria se dedicar por completo às projeções. "A pandemia me abriu um não-compromisso com trabalhos dos outros e poder pensar formas de ocupar esse espaço público, as janelas. Logo no final de março, começo de abril, eu e as DJs Andrea Gram e Nikkatze começamos a experimentar as possibilidades de fazer lives4. As DJs tocando e as projeções em simultaneidade projetadas na cidade. A gente ainda estava na fase de experimentação, de entender como fazer com as câmeras, fazer o laser e cuidar da dinâmica da edição ao vivo.” A ideia era meio colocar a cidade para dançar e meio colocar mensagens para lidar com esse momento.
Morar na Cracolândia
Paulinho chegou à Cracolândia logo no começo da pandemia, quando sua namorada, uma jovem restauradora polonesa, se viu obrigada a voltar para a Polônia por causa da pandemia e ele não pôde seguir. Temendo voltar para a casa dos pais e colocá-los em risco, e querendo registrar os acontecimentos da pandemia, aproveitou uma oportunidade de ocupar um espaço vago na área, um apartamento com acesso a uma cobertura. Montou uma mesa na varanda da cobertura e começou a olhar o que acontecia nas ruas. E também a projetar por cima delas.
“Eu vivo muito o Centro, meu pai morava lá, trabalhava lá, sempre foi meu espaço, o lugar em que me reconheço em São Paulo. Meu avô trabalhou quase toda a vida em um hotel na Major Couto Magalhães. No dia em que morreu, ele foi visitar o hotel de carro, voltou pra casa, tomou um vinho e teve um AVC. Então, ao longo da minha infância sempre acompanhei essa região, o local onde meu avô trabalhava, o antigo prédio do DOPS, onde meu tio e meu pai foram presos durante a ditadura."
Crise humanitária em São Paulo
Como todo mundo que vive no Centro, Paulinho pode acompanhar com os olhos, todos os dias, o aumento da miséria nas ruas de São Paulo. A crise humanitária paulistana, piorada durante a pandemia, está espalhada por bairros da cidade, mas tem como marco zero os entornos da Praça da Sé e da Cracolândia.
"Tem uma coisa que é o fluxo da Cracolândia, e tem outra coisa que são os moradores de rua pelo Centro. Muita gente vem de outras periferias, de outros estados, gente que não morava na rua antes, famílias inteiras sem condições de pagar aluguel e indo para a rua. É um aumento visível da miséria. Ao mesmo tempo, houve o momento em que os bares e restaurantes, as fontes de comida, algum banheiro, alguma água, algum respiro, foram fechados. É impressionante o aumento da escassez nas ruas de São Paulo. E de alguma forma, durante a pandemia se respeitou um pouco mais o uso de barracas, inclusive improvisadas, para se protegerem do mundo.
"A Praça da Sé virou um espaço de união. Entendo assim, convivendo lá, que grande parte do motivo que as pessoas vão para lá não é só pelo uso das drogas, mas para estarem perto de outras pessoas que também estão nessa condição. Assim, se sentem mais protegidas do que isoladas, menos sujeitas à barbárie, à covardia da própria sociedade. De alguma forma estão juntas, se protegem, enquanto um está dormindo tem outro olhando. A GCM tem impedido as pessoas de levar água e comida para pessoas que se reúnem ali5. Eu vi isso. Foi muito intenso ver a miséria concentrada em São Paulo sendo abandonada pelas políticas públicas. Em abril, durante a pandemia, a prefeitura fechou a única fonte que as pessoas tinham para pagar R$1 por um prato6, um lugar em que podiam lavar as mãos, ir ao banheiro. No momento de endurecimento da pandemia, essas pessoas foram abandonadas à própria sorte7."
"Eu posso falar da barbárie cotidiana. Eu vi. Toda vez que olhava pelo prédio, era chocante. O terraço de um prédio na Cracolândia é um lugar em que se pode ver o céu e o inferno ao mesmo tempo. A escala da cidade, a favela da Brasilândia, o Pico do Jaraguá onde estão os Guarani, os lugares que são parte da história de São Paulo, a Santa Efigênia, o DOPS, a Estação da Luz, a Estação Júlio Prestes. No mesmo plano, tudo junto. Essa transformação de onde era terminal de ônibus e está virando prédio, todas essas disputas territoriais, a alteração da vida no Centro, o embrutecimento do lugar que sempre vivi.”
Apenas para apoiadores do Paulicéia: imagens do trabalho do P_Fluxz em São Paulo e Brasília.