[Paulicéia 061] Semana de 1922: "O que o público vê é apenas uma pequena fração dessa história"
Luiz Armando Bagolin, curador da mostra "Era Uma Vez o Moderno", fala sobre processo de mitificação da Semana
Luiz Armando Bagolin, professor de História da Arte no Instituto de Estudos Brasileiros da USP e curador da exposição "Era Uma Vez o Moderno", explica alguns mitos sobre como enxergamos hoje a Semana de Arte Moderna de 1922.
Na próxima edição 👉 apenas para apoiadores do Paulicéia: uma aula explicando a gênese da Semana de Arte Moderna e um sorteio para ganhar R$115 em livros na Dois Pontos, que está com uma seleção especial sobre modernismo brasileiro.
IEB: o maior acervo de modernismo (e não só) do Brasil
“O IEB tem uma coleção muito grande sobre modernismo, construída em cima de uma pedra fundamental: o acervo do Mário de Andrade, comprado pela USP em 1970. Esse acervo está dividido em três partes, com mais de trinta mil itens: a parte A tem correspondências, manuscritos, primeiras versões, por exemplo, do "Macunaíma", e originais dos poemas, alguns escritos à mão; a B é a biblioteca, tem todos os livros do Mário, com anotações e marginálias; e a C, que é a coleção de arte. Mário de Andrade colecionou muita coisa, algumas compradas e outras recebidas como presente. A coleção de arte do IEB tem mais de oito mil itens só dele — porque nós temos os acervos do Guimarães Rosa, do Milton Santos, do Celso Furtado, do Graciliano Ramos… O Instituto de Estudos Brasileiros é o maior instituto do mundo.”
“Há muitas celebrações em 20221. O Centenário da Semana de Arte Moderna, o bicentenário da Independência, e também os 60 anos do IEB, que foi criado em 1962 pelo (historiador, sociólogo e escritor) Sérgio Buarque de Holanda2 e durante muitos anos ficou acondicionado dentro da USP de uma maneira improvisada, em prédios que não eram apropriados. O IEB só ganhou uma sede própria, o Complexo Brasiliana, com todas as condições de guarda de acervo e de exposição, além de condições de atender os pesquisadores, em 2013. A Biblioteca Mindlin3 é um dos espaços desse complexo, com cerca de 40 mil itens. O IEB é outro, e só de biblioteca tem mais de um milhão de itens.”
“Aproveitando essas datas, estamos trabalhando em uma segunda exposição, com poucos artistas. São artistas contemporâneos, indígenas, que trabalham com a questão de gênero e com as pautas identitárias, e que estão muito pouco preocupados com o modernismo. Alguns não conhecem a história, outros nem querem saber, outros se apropriaram de alguns elementos da história brasileira para fazer as suas obras contemporâneas de maneira crítica. Queremos abrir essa exposição, temporariamente chamada "Depois de 22", em maio. É para ter uma visão sincrônica: a exposição histórica, vendo o modernismo no tempo deles, e o Instituto de Estudos Brasileiros, que nunca recebeu uma exposição de arte contemporânea, para receber os artistas brasileiros de hoje pensando o Brasil hoje.”
Era uma vez o moderno…
“No segundo semestre de 2020 começaram as negociações entre o IEB e outras instituições, uma delas o Sesi, com o interesse de fazer uma exposição ao redor da nossa coleção de modernismo, tendo como pretexto o Centenário da Semana de Arte Moderna. A partir dessas conversas, eu comecei a fazer uma pesquisa. No segundo semestre de 2020 tava tudo fechado, tinha pandemia, foi muito difícil entrar no acervo porque os funcionários tinham que se deslocar das suas casas, e a gente tinha que estar presencialmente no IEB, entrar lá para ver os documentos, ver os livros, ver as obras de arte. Foi dessa pesquisa muito ampla que nasceu esse projeto da exposição e um livro, homônimo à exposição, que será lançado em março. A pesquisa é a base dessa pirâmide, depois vem o livro, e no topo da pirâmide, bem menor do que os dois volumes abaixo, está a exposição. A exposição é uma ponta de iceberg, o que o público vê é apenas uma pequena fração dessa história.”
“Precisava ter um critério, um corte curatorial, e escolhemos de 1910 a 19444. É uma exposição de caráter sincrônico, que estuda o modernismo no contexto histórico dele, de acordo com o pensamento, as opiniões e os conflitos que eles viveram. O que tentamos fazer foi organizar os documentos e obras de arte em uma cronologia que conte essa história a partir do presente histórico vivido pelos modernistas.”
A gente tem, do ponto de vista histórico, uma narrativa sobre o modernismo brasileiro construída muito recentemente, a partir do enaltecimento dos modernistas. E essa história é estranha ao contexto histórico originário.
“A narrativa que se construiu sobre a Semana de Arte Moderna, sobre o modernismo paulista, sobre o protagonismo de São Paulo, é um discurso que pegou5, que tinha terreno para se sedimentar principalmente em um meio conservador e patrimonialista como São Paulo. Os paulistas amam a tradição. Torcem o nariz, falam que não, mas amam tradição, são muito conservadores. E aí, nesse nesse terreno fértil, se consolidou uma visão distorcida se comparada ao contexto histórico originário.”
“Por outro lado há uma reação6, que as pessoas têm chamado de revisão crítica. O que está acontecendo hoje em dia é uma reação contra essa narrativa que foi construída a posteriori. As pessoas que estão por detrás desta reação não estudaram o contexto original. Se pergunta muito hoje, "ah, os modernistas devem ser criticados, censurados" porque, por exemplo não respeitaram os lugares de fala dos índios, dos negros, da comunidade LGBT , das mulheres. Quando colocam-se essas questões, que pertencem à pauta de hoje, as questões de gênero, de raça, de racismo estrutural, conceitos e nomes que não existiam nas décadas de 1910 e 1920, há um anacronismo.”
Numa situação como a nossa, em que essas pautas são absolutamente vitais, com o sentimento de impotência que pertence ao nosso contexto, isso nos mobiliza a querermos tirar satisfação inclusive dos modernistas. Eu acho que há um clamor muito grande e não há, ainda, muita condição de pensar racionalmente sobre as contribuições. Não se trata de fazer uma apologia do que eles fizeram e não se trata tampouco de censurá-los.
“Em 1922, que era o ano do Centenário da Independência, só havia 34 anos desde a abolição da escravatura7. Se você fosse uma pessoa negra e estivesse andando na rua depois do anoitecer, sentado na rua conversando, você poderia ser levado para uma delegacia. A sociedade era ainda mais conservadora do que é atualmente. Então, de fato, nosso modernismo foi proclamado por uma elite branca, majoritariamente burguesa. Eles estavam criticando o consumo cultural da própria elite à qual eles pertenciam. Eles vão contrariar os pais, os avós, os tios, os antigos barões. E as pessoas se esquecem disso, mas é importante ressaltar que o Festival Modernista, como eles chamaram, teve adesão de cariocas, mineiros e estrangeiros..”
O que ficou como positivo da obra dos primeiros modernistas?
“Muita coisa. A gente ficaria horas falando sobre o que há de bom. Mas o que me chamou atenção nessa pesquisa, e que está exposto de maneira muito singular em "Era uma vez o moderno", é a visão que o Mário de Andrade teve, no final dos anos 1920, do Brasil profundo, o conjunto de culturas dos povos originários. Para o Mário de Andrade isso é tão fascinante, é tão rico, que num primeiro momento ele olha com o interesse estético, mas imediatamente já não está mais satisfeito nem com o Macunaíma, nem apenas com as apropriações de estéticas desse Brasil Profundo, porque é tão rico que merecia ser estudado cientificamente. Ele criou a Sociedade de Etnografia e Folclore e a missão de etimologia, em 1935, quando foi diretor do departamento de cultura em São Paulo, e levou Claude Lévi Strauss até os Bororos no Xingu8. Isso é resultado desse interesse do Mário já no final dos anos 20, de que nós não vamos conhecer quem nós somos de verdade se não conhecermos esse Brasil profundo, isso que às vezes nem tem nome. Passou cem anos e a gente ainda não se conhece, né? E os povos estão sendo trucidados, os indígenas estão sendo desapropriados dos seus lugares, do seu habitat, o meio ambiente está sendo destruído, é um apagamento que não é só da memória, é um apagamento da futura possibilidade, da gente vir a se entender, de sabermos quem somos. Como é que nós podemos conviver com tantas diferenças? Porque nós somos diferentes, a riqueza do Brasil é essa diferença.”
O erro do modernismo foi tentar fazer uma síntese dessas diferenças. Do modernismo apropriado, do modernismo transformado em establishment pela política.
“Mas o outro lado é que eles abriram a possibilidade de entendermos que não é só olhando para fora, para a Europa, para os Estados Unidos, que a gente vai se sentir de fato valorizado. De fato, como cidadão do mundo, a gente vai se sentir mais valorizado, mais seguro, com mais confiança se olharmos para nós mesmos, para o nosso próprio lugar. Acho que essa é a grande contribuição dos modernistas.”
O que é possível apontar como erro na construção do mito do modernismo?
Existe uma narrativa que se tornou muito forte a partir dos anos 1970, mas que começa já no governo Vargas. O Estado Novo viu essa busca que várias direções dentro do modernismo adotaram por uma identidade brasileira, por uma arte moderna com identidade própria, que sintetizasse o que a gente chama de identidade brasileira através da arte, com olhos muito ávidos. Essa arte interessava à retórica estatal ufanista, de patriotismo, de "nós teremos o novo homem, o homem brasileiro". Houve uma cooptação do movimento modernista nas suas várias direções pelo Estado Novo.
O modernismo se tornou a política cultural do establishment, o "verdeamarelismo", o bandeirantismo, essa coisa ufanista que havia em várias propostas.
Depois de 1922, o Menotti Del Picchia se afasta do Mário e do Oswald, se aproxima do Cassiano Ricardo e do Plínio Salgado, funda o Verde Amarelo, de onde depois sai o grupo Anta9, que são movimentos paulistas, hoje esquecidos.
Os militares, após o golpe de 1964 e durante a ditadura, também adotaram o modernismo. Abraçaram, comemoraram, investiram em obras que se tornaram matéria do Ensino Médio, depois dos vestibulares. Isso, eu acho, é o mais complicado, porque o período não foi estudado no contexto próprio. Foram feitas apropriações em nome de uma ideologia a serviço de um governo de ultradireita, primeiro lá no Estado Novo e depois no governo golpista militar.
E tem a contribuição do meio acadêmico que também foi enaltecendo. Um ano antes do cinquentenário da Semana, em 1971, o MIS de São Paulo reuniu vários dos modernistas ainda vivos10, a Tarsila, o Menotti, o Guilherme de Almeida, e gravou esses depoimentos. E é interessante porque eles ficam surpresos, já velhinhos. Eles mesmos não tinham essa dimensão heróica, começam a ser confrontados com isso em 71 e, claro, ficam felizes, "Eu não vou morrer sem um sentido para minha vida, eu fui importante para o Brasil". Mas é uma construção que se deu posteriormente.
A polêmica como instrumento
“Logo após a Semana, o Mário escreve pro Menotti que eles provocaram a ira da imprensa. Quinze dias após a Semana, a imprensa continua falando. Então, o Mário escreve assim11: ‘Nós conseguimos, nós despertamos a fúria dos araras (jornalistas). Estamos célebres! Enfim! Nossos livros serão comprados! Ganharemos dinheiro! Seremos lidíssimos! Insultadíssimos! Celebérrimos! Teremos os nossos nomes eternizados nos jornais e na História da Arte Brasileira.’”
“Eles foram espertos no sentido de entender que pouco importava o teor da obra apresentada no festival. A maior parte das obras apresentadas eram pouco modernas, com exceção da Anita, do "O Homem Amarelo", as pinturas que ela tinha exposto em 191712, e que eram realmente muito novas para a época. O resto não tinha, em sua estrutura, algo moderno.”
A estratégia era fazer barulho. Fazer um evento bem sucedido em termos de propaganda, que fosse coletivo, que tivesse um caráter performático e hedonista. Isso é uma coisa que funciona até hoje: você é um bom escritor, um ótimo instrumentista, um excelente pintor, e daí? Ninguém conhece seu trabalho. Mas faz um auê nas redes sociais? Aí pouco importa, digamos, a qualidade artística, se essa obra vai ter durabilidade, se foi bem feita de acordo com as regras técnicas. O que importa é o evento.
“Eles já tinham compreendido naquela época (antes do rádio, hein!) que era preciso provocar a imprensa, que a imprensa seria um veículo para esta manifestação, e quanto mais fosse negativa a reação da imprensa, mais eles cresceriam na memória do público.”
🖼️ Era Uma Vez o Moderno
Galeria de Arte do Centro Cultural Fiesp
Avenida Paulista, 1313 (em frente ao Metrô Trianon-Masp)
De quarta a domingo, das 11h às 20h, até 29 de maio de 2022.
Entrada gratuita.
Evite filas, agende a visita no site
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