[Paulicéia 021] Thiago Vinicius: "A cozinha do mundo está nas periferias"
Para o criador da Agência Popular Solano Trindade, vencedor do prêmio 50 Next, a quebrada é o local de todas as gastronomias do mundo
Thiago Vinicius, morador do Campo Limpo, zona sul de São Paulo, se define como um costurador de redes: "me apresento como alguém que costura essa grande colcha de retalhos no tecido social da nossa cidade, um costurador de redes, um fazedor de pontes, no sentido de realizar encontros onde a gente reflete a nossa cidade." Essa articulação é visível nos projetos criados por Thiago desde 2012, à frente da Agência Popular Solano Trindade, e da criação de projetos como o Festival Percurso, o primeiro espaço de coworking e o primeiro empório orgânico das periferias paulistas. Na entrevista abaixo, Thiago fala sobre o qual o impacto de ter entrado para a lista The World 's 50 Next como um dos líderes comunitários mais relevantes do mundo1.
Gaía Passarelli - Como nasceu a Agência Solano Trindade?
Thiago Vinícius - A agência nasce dos movimentos sociais e culturais da zona sul de São Paulo. Nos vemos como um coletivo de jovens pretos da periferia, que têm na cultura e no empreendedorismo uma forma de viver seus sonhos. Pensando nisso, criamos em 2012 a Agência Solano Trindade, o primeiro coworking na periferia de São Paulo, com o intuito de fortalecer o nosso corre econômico e fortalecer a juventude através do microcrédito. Criamos um banco com moedas sociais, o primeiro banco comunitário de São Paulo. Para nós, a economia solidária significava significava ter um espaço de trampo e oferecer esse espaço a empreendedores e empreendedoras. Em 2014 a gente fez o primeiro festival Percurso na Praça do Campo Limpo.
Qual é a importância de incentivar a cultura nas periferias?
O fortalecimento do direito à cidade. Colocar em xeque o que é privilégio. Que cidade é essa que a gente vive? Acho que a cultura abre a possibilidade de nos tirar do nosso convencional e circular na cidade. Quando a gente circula na cidade a gente estabelece vínculos. E quando a gente estabelece vínculos a gente vê aquele lugar como potência. As pessoas quando vêm ao festival veem o Campo Limpo como potência, saem com outro Campo Limpo na cabeça, com outro país na cabeça.
Por que batizar a agência em homenagem ao poeta Solano Trindade?
Solano Trindade é o poeta do povo, de luta de resistência, foi um dos criadores do Teatro Experimental do Negro. Nascido em Recife, terminou seus dias em Embu das Artes, aqui pertinho, e falava assim: “tem gente com fome, tem gente com fome”. A gente sempre escutou as histórias da Raquel Trindade, filha dele, que é Notório Saber pela Unicamp, escritora, coreógrafa e teatróloga. Uma família que a cultura é em alto nível. Tem uma frase dele que é "pesquisar na fonte de origem e devolver ao povo em forma de arte". Então é um pouco assim que devolvemos ao povo em forma de arte, uma vez que estamos aqui conectados nessa fonte da origem da vida.
Como são as edições do Percurso?
É tipo um Lollapalooza ou Rock In Rio da favela. Rola o espaço de samba, que é a Tenda dos Povos. Rola a Tenda dos Erês, dedicada às crianças, com brincadeiras o dia todo. Tem a feira de empreendedorismo, com mais de 150 expositores vendendo camiseta, boné, livro, decoração pra casa, muita coisa mesmo. Tem a praça de alimentação com trinta tipos de comida, desde pastel de coração de bananeira até feijoada, cerveja artesanal e acarajé. Tem o espaço Alimentando Pontes, onde chefs como Bel Coelho, Helena Rizzo e Alex Atala vêm e cozinham com a Tia Nice2 (mãe de Thiago e chef do Organicamente Rango). Esse espaço fica lotado, tem cinquenta lugares para as pessoas degustarem todas as comidas que os chefs fazem. E tem os shows que revelam artistas da comunidade, até às dez da noite, que é a hora dos headliners. Desde 2014 já tivemos Racionais MC's, MV Bill, Flora Matos, Rico Dalasam, BaianaSystem, Boogie Naipe3 e Seu Jorge. E também aumentamos o número de empreendedores da Rede Solano. Em 2018, tivemos O Maior Terreiro do Mundo4, com a Mãe Beth de Oxum e Rincon Sapiência. Foi bem foda essa. 2019 foi bem foda também, como Sarau do Binho, Z´afrika Brasil, Rael e Thaíde, em homenagem à Tula Pilar, a poetisa da quebrada. O festival foi se tornando uma grande referência de economia criativa na periferia, dando um fortalecimento para que as pessoas pudessem mudar de carreira. Para as pessoas ricas, mudar de carreira é muito mais por causa do suporte econômico que elas têm. É assim: fundamos a Solano focada na economia criativa, com o coworking, daí veio o Festival Percurso e a gente se tornou um SEBRAE da favela para os empreendedores e empreendedoras da cultura. Para ter a sua barraca no festival, você precisa vir de uma mentoria que nós oferecemos, tem que ter 100% de presença. Você fazer o que nós fazemos na quebrada, que é deixar de ser empregada doméstica para se tornar vendedora de turbantes, essa migração econômica é muito séria, você tem que fortalecer muito o mercado. É isso que a Agência Solano faz. Daí, em 2017, nós lançamos o primeiro armazém de comida orgânica da periferia de São Paulo.
Por que esse recorte do orgânico?
Porque é comida sem veneno, uma comida com acesso à vida. A gente acredita que quando você acessa um alimento orgânico você vai menos na fila do posto de saúde. Essa causa e efeito para nós é muito visível. Pesquisando nossa história, vimos um lugar que era roça, era uma região de sítios. Campo Limpo, Capão Redondo, Jardim das Rosas são nomes que remetem à natureza, então a gente viu que isso era a nossa história. Nossos avós vieram de um contexto de roça, nossos avós comiam orgânicos, nossas mães comeram orgânicos, só que não tinha esse nome, não tinha o raio gourmetizador. A favela é PhD em comida vegetariana, nossa comunidade manja muito de tecnologias de alimentação. Eu vejo muito a história da minha mãe, a Tia Nice. Ela sempre fez comidas maravilhosas. A gente não tinha condições de comprar carne, ela fazia tabule, charutinho de capuchinha, usava pancs. Mas fomos perdendo os quintais nas favelas, nos distanciando cada vez mais. E em 2019, no dia 12 de outubro de 2019 veio o restaurante, que é a Cozinha da Tia Nice - Organicamente Rango. Porque o que não vendia no armazém, a gente transformava em pratos.
Como foi entrar para a lista de 50 pessoas que estão moldando o futuro.
É uma possibilidade de colocar a periferia no circuito gastronômico de São Paulo. O futuro da gastronomia não pode ser medido pelo número de restaurantes, mas pela necessidade de alimentar as mais de 25 mil pessoas que hoje estão nas ruas. De que adianta ter os restaurantes mais badalados, mais caros da América Latina, sendo que na rua desses restaurantes as pessoas estão passando fome? Nós distribuímos 35 mil marmitas até agora, durante a pandemia. A gente se movimentou. Nós, os pobres da quebrada, fomos lá e fizemos. Então esse prêmio foi uma forma de colocar a nossa quebrada na discussão do que é a gastronomia, nesse momento em que o mercado de restaurantes sofreu muito. Foi um prêmio que coroou todos os trabalhadores de restaurantes, cozinheiras, garçons, todas essas pessoas que saem daqui do Capão Redondo. Para um restaurante nos Jardins funcionar, além do chef que chega lá pra botar a salsa no bagulho, teve essa gente que chegou cedo, cortou, limpou, fez de tudo. Eu sempre fiquei fascinado pela qualidade das comidas que saem daqui. É muito louco você pensar que o sushi japonês quem faz é da Bahia. As pessoas da quebrada manjam todas as cozinhas do mundo. A cozinha marroquina tá aqui, a cozinha japonesa tá aqui, a comida chinesa e italiana estão aqui. A cozinha do mundo está nas periferias. O prêmio foi ainda uma forma de reafirmar o espaço da Tia Nice como uma grande chef. Ela usa pancs no terreiro, como ora pro nobis, que é comida de santo. Todos os outros chefs que viajam por aí, que pegam formiga não sei de onde para colocar na farofa, saem de fontes de origem como essas. Ter a Tia Nice ali foi uma forma de mostrar que ela tem conhecimento ancestral. Acho que vai ter a premiação em Bilbao, na Espanha, estamos esperando a Covid dar uma amenizada para fazer, pra ir lá receber o prêmio.
A premiação abriu outras portas pra vocês de alguma forma?
Surgiu mais rotatividade no restaurante, porque se criou esse oráculo da gastronomia ancestral da tia Nice. Acho que saímos um pouco da nossa bolha, que era nossos amigos que vão no restaurante, tipo um lugarzinho vip da quebrada, tá ligado? Um lugar dos nossos amigos. Eu faço rolês na quebrada, junto uma turma de pessoas e a gente fica andando na quebrada, refletindo, andando na periferia, depois chega e tem o almoço lá no restaurante. Aí com o prêmio meio que furou a bolha. Saiu na capa da revista do Estadão5, da Folha6, a gente teve que redobrar a atenção na qualidade que entregamos.
Vocês fecharam o restaurante durante a pandemia?
Fechamos para o grande público, mas abrimos ações para combater os impactos da Covid-19 nas periferias. Esse atendimento chegou a mais de 200 mil pessoas, nós viramos um Médico Sem Fronteiras, uma Cruz Vermelha. A galera do restaurante começou a trabalhar no projeto da marmita, a galera que trabalha na agência começou a receber cestas básicas e cadastrar as famílias para doações. Nossa equipe mudou de posição junto com a realidade, a gente viu que seria urgente para a sobrevivência de 200 mil pessoas poder repactuar nossas funções. Estamos distribuindo em uma comunidade perto de Taboão da Serra, que foi a primeira cidade a ter morte por Covid-19 em São Paulo. No restaurante, o público está voltando aos poucos. Nosso cliente é o cliente que está tolhido de renda, o lugar geográfico da cidade faz com que seja isso, as pessoas não têm condições. Por isso que estamos distribuindo marmitas. A gente acessa um público que pode pagar e um público que, infelizmente, não paga. E a gente sente que faltam políticas que consigam emergir a economia de fato, para que as pessoas consigam ter perspectivas, consigam se programar economicamente. Pessoas de todas as classes sociais estão sofrendo assim, mas na periferia as pessoas sofrem mais. O auxílio emergencial é pouco, passa uma mensagem de que não quer te dar o negócio. Sinto isso quando vejo o sofrimento das pessoas na fila para pegar o auxílio. Elas vão ficar lá o dia inteiro, entendeu? A gente fica feliz com várias coisas que a Agência Solano faz, mas era pro nosso povo estar mais assistido.
E se alguém quiser apoiar de alguma forma, para a compra de insumos ou combustível, qual é o canal para chegar em vocês?
Pelas nossas redes sociais, é só chegar lá e dar um salve. No nosso site tem um caminho, qualquer pessoa pode entrar e doar. E pode vir comer no nosso restaurante, comprar da gente as cestas de alimentos orgânicos que entregamos na região do centro expandido. Tudo isso ajuda no ecossistema.
O que você espera de 2022?
Em 2022 a gente precisa voltar a respirar, voltar a viver em um país com respeito pelas pessoas, com mais livros do que armas. Onde a gente possa ter ocupação da cidade, uma retomada econômica cultural bacana. Onde o jovem possa ter perspectiva de fazer faculdade, que está voltando a ser uma coisa que só ricos fazem. Espero que a gente possa ter um macro ambiente mais harmônico e que essa harmonia possa chegar em nós aqui no Capão Redondo, que possa irradiar em toda a cidade. A gente espera um país com declarações que incentivem as pessoas. Sair um pouco do umbigo das instituições. A gente tá vendo muito Brasília e pouco do nosso país.
A chef Izadora Ribeiro, criadora do Isla Café, fala sobre o projeto Cozinha de Combate, que uniu restaurantes da região central para alimentar desabrigados na fase mais crítica da pandemia.
O Festival Percurso 2017 foi um grande baile black (Vice Brasil)
Festival Percurso transforma Praça do Campo Limpo em território de tradições africanas (Desenrola Não Enrola)
Por trabalho orgânicos jovem paulistano está no 50 Next (Paladar Estadão)