[Paulicéia 033] Alana Carvalho: "Estava sendo dolorido falar sem viver a cidade"
A criadora do guia Viva Cultura conta os desafios de criar conteúdo sobre a cidade durante a pandemia
Eu nem lembro de quanto conheço a Alana. Acho que comecei a prestar atenção no Viva Cultura, um perfil sobre dicas culturais de São Paulo com mais de cem mil seguidores no Instagram, na mesma época em que comecei uma pira de viajar dentro ca capital. O que coincidiu com um momento em que a cidade estava muito aberta para quem quisesse explorá-la, com um movimento forte de retomada do Centro, abertura de dezenas de novos restaurantes, fortaleciento de eventos de rua, de feiras, festas e espaços culturais. No papo abaixo, a Alana, que não só viveu tudo isso mas transformou essa eletricidade cultural paulistana em profissão, conta como a pandemia a afetou. E, claro, arrisca dizer o que virá depois.
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Gaía - Como surgiu e como funciona o Viva Cultura?
O Viva Cultura surgiu em setembro de 2014. Era um momento em que São Paulo era uma outra cidade. As pessoas ainda tinham muito essa coisa de visitar museus em viagens no exterior, mas não tinha essa apropriação, essa ocupação da cidade que tem hoje. O Viva nasceu para mostrar que São Paulo tem muita coisa bacana, tem muita coisa acessível. Foi fundado por mim, naquela coisa de vamos tentar aqui no Instagram e ver no que dá. Era um momento em que o Instagram não era ainda o que é hoje, as pessoas estavam migrando aos pouquinhos do Facebook. Conversando com um amigo meu que era muito conectado com a gastronomia, falei que a ideia era trazer o que tá acontecendo de forma mais fácil, sem ter que ir atrás, abrir o jornal, buscar nos guias. Ele falou que sentia a mesma coisa, topou fazer junto. Então foi a fundação, digamos assim, com o Guilherme, que é meu atual sócio. Depois a gente resolveu abrir alguns braços além da cultura: a gastronomia, o cinema. Mas sempre com a marca do Viva. São perfis diferentes nas redes: Viva Cultura, Viva Gastronomia, Viva Cinema. Além disso, temos uma empresa-mãe, o Dica Viva. No início só fazíamos conteúdo nas redes sociais, até porque a gente não sabia o que queria ser. Sabia que não seríamos só influenciadores, mas faltava responder: a gente vai fazer o quê? Então levamos um tempo para entender que o nosso mote, o que a gente curte, é produzir as experiências e facilitar o conteúdo para as pessoas irem atrás dessas experiências, sejam elas culturais ou gastronômicas. Nesse momento de pandemia está parado, mas até 2019 a gente oferecia atividades culturais e gastronômicas na cidade. Tinha visitação na Vila Itororó, quando ainda era fechado para o público; visita no Casarão da Dona Veridiana1. Tem uma série de experiências que são meio secretas, divulgamos um tema, o bairro, a data e o horário, o endereço com 24h de antecedência, mas a pessoa não sabe o que vai acontecer, e só descobre o na hora do evento. A gente tem uma atividade artística, que transformava lugares diferentes, cafeterias, cervejarias num grande ateliê de arte para produzir telas, cada um levava sua obra embora. Experiências intimistas culturais. São essas experiências, criadas para terceiros, que sustentam o projeto.
2014 também é um momento em que São Paulo começa a ter essa coisa de ocupar a cidade, ocupar o centro, um comportamento que já acontecia mas que cresceu muito na gestão do Haddad.
Muito! Teve essa mudança de percepção da cidade, a partir dos eventos de rua, da Virada Cultural, porque era o único evento grande de cultura na cidade, e aí juntava tudo num final de semana. Depois veio o aumento do interesse pelo Carnaval de rua, a Jornada do Patrimônio... Todos esses eventos ajudaram a levar as pessoas para rua, de conhecer e andar no Centro. As pessoas de fato se apropriaram da cidade.
De quando vocês começaram o Viva Cultura até agora, quais os três momentos que você sente que são pontos de virada da cultura na cidade?
O Carnaval é um ponto muito forte. Ter pessoas diferentes em lugares que talvez elas nunca tivessem ido, andando na cidade, trazer pessoas das periferias pro Centro para acompanhar um bloco ali, ou levar a galera que só anda de carro na cidade pro meio do Centro pra andar ali a pé, ver os lugares. Acho que a Jornada do Patrimônio foi um ponto importante também, mas ela ainda não chegou lá porque teve a pandemia.
Você falou dois pontos: Carnaval e Jornada do Patrimônio. Qual o terceiro?
Talvez por aproximar as pessoas dos equipamentos culturais, acho que as exposições acabam sendo bem importantes, levam as pessoas para um museu, para um centro cultural. Como a mostra do Impressionismo que teve no CCBB há uns anos. Acho que esse foi um grande ponto também, fez muito sucesso, alcançou muito mais gente do que, sei lá, quando teve Monet no MASP2. Então acho que abriu um pouco os olhos das pessoas. O MIS também ajudou muito nisso de abrigar exposições diferentes, mostrar que não existe só arte clássica nos museus. Cada vez mais eu vejo museus se abrindo, como a Pinacoteca com OSGEMEOS, essas grandes exposições que têm muito apelo para um público amplo.
E quando começou a pandemia, em março do ano passado, a Viva Dicas estava em que situação?
2019 foi um ano muito bom! Acho que a gente já tinha entendido o que queríamos fazer, já sabia onde atacar, tava criando uma boa cartela de clientes e de atividades, tava com o lançamento do livro "Mulheres de São Paulo" previsto. Aí veio a pandemia e 90% de tudo foi cancelado. Não tinha mais sentido também o que produzíamos para as redes sociais, porque a cidade estava parada. Tava todo mundo perdido. E 2020 seria o nosso grande ano da virada, estávamos com planos de fazer grandes eventos via Rouanet, via Proac, com patrocínio. Foi tudo foi pausado. Se der certo, em 2022 nós voltaremos a fazer atividades presenciais. Não voltamos ainda porque sempre optamos por valores acessíveis, até uns R$ 50 por pessoa, e a gente sabe que o brasileiro está quebrado. Mas aí, em paralelo, o que temos feito é investir nas publicações. Então em 2020 teve o "Mulheres de São Paulo". E ainda esse ano, no final de novembro, vamos lançar um zine. Escolhemos justamente um zine por ser uma publicação de guerrilha, de baixo custo, e também para estimular as pessoas a levarem embaixo do braço para onde forem. Não é aquela coisa do livro, que tem que ficar em casa. É um almanaque contando a história de doze bairros de São Paulo, e resgata desde a história da Mooca, dos indígenas e outras coisas, vindo até os dias de hoje, com sugestões de passeios e atividades culturais para fazer nos bairros, além de alguns passatempos. É tipo um almanacão para adultos! Esse vai ser o volume um, com oitenta páginas e doze bairros: são quatro do Centro, mais dois de cada uma das zonas. Tem bairros icônicos tipo Liberdade e Higienópolis, mas também tem Capão Redondo e Parque Edu do Chaves, para tentar fazer essa amostragem do que é São Paulo dentro das grandes distâncias da cidade. A pré-venda começa em 24/11 no nosso site.
Como vocês lidam com a questão da centralização da cultura em São Paulo? Porque a gente vive uma cidade enorme, que tem cultura em todas as regiões, mas sempre se falou muito do Centro expandido, como se São Paulo fosse uma coisa entre o Brooklin e Pinheiros, passando por Higienópolis. Mas estamos vivendo um momento de mudança, muito motivado por conteúdos digitais. Como vocês acompanham isso no Viva Cultura?
A gente acompanha e vê muita coisa bacana sendo feita. O grande fator é chegar aos lugares. Então, sim, a gente acaba falando muito sobre as coisas que acontecem no Centro, porque querendo ou não, a gente sabe que os principais equipamentos culturais estão aqui. Eu entendo também que estamos falando de uma cidade que se desenvolveu a partir do Centro, então os patrimônios históricos estão no Centro expandido. Se você pegar a história mesmo dos bairros, é muito recente a ocupação, o registro como bairro. Mas a tendência é, ou pelo menos eu espero que seja, que de fato surjam cada vez mais equipamentos culturais nas regiões menos centrais. Paraisópolis já tem várias coisas nesse sentido3. A Jornada do Patrimônio tem atividades na cidade inteira. Então a gente tentou falar sobre coisas no Centro e sobre coisas que acontecem nas demais zonas também. Tínhamos um walking tour no Carandiru, sobre a memória, focado nas penitenciárias, e sobre como essa memória dos penitenciários, a memória do Carandiru afeta a cidade. A gente queria fazer uma tour no Jardim Nakamura, que tem uma cena da arte de rua muito forte, eles tinham um walking tour que o Sampapé ajudou a organizar, mas não acha informação, não acha registro. E assim, entendo que existe um apagamento histórico das periferias, então acho que aos poucos estamos caminhando para ter mais protagonismo da arte periférica.
E o que que mudou na cobertura de vocês durante a pandemia? Porque assim, uma coisa era ficar aqueles primeiros dois, três meses falando que tá acontecendo no online, mas outra coisa ficar quase 2 anos fazendo isso.
Quando fechou tudo a gente falou: não adianta falar sobre explorar a cidade com as pessoas em casa. A gente vai gerar muito gatilho, não tem como incentivar a sair. Não dava. Em 13 de março de 2020 publicamos um texto falando: olha, até voltar ao normal, todas as dicas são focadas em cultura online. Então foi uma oportunidade também de expandir e falar sobre Inhotim, as exposições online, artistas de outros lugares ou museus do mundo. Entrou essa gama de assuntos, o que foi interessante. Ficamos assim até novembro do ano passado. Mesmo quando começou a reabrir algumas coisas, a gente ainda segurou. Aí depois começamos a falar só de lugares abertos: parques, mirantes, praças, coisas pra fazer ao ar livre. A gente segurou até onde deu, começou a falar pontualmente só no feed, não colocava nos stories, sempre lembrando a questão do cuidado: vai com máscara, com álcool gel, respeita o protocolo, não tira a máscara para foto. Ali, em janeiro de 2021, as expectativas para 2021… e em março fechou tudo de novo. A gente já não tinha mais fôlego nenhum. Não tinha mais de onde tirar criatividade, força, nada. E aí falamos olha, não dá, tá fazendo mal para nós, a gente não consegue produzir assim. Estava sendo dolorido falar sobre a cidade, e resolvemos desativar tudo por uns meses. Desativar mesmo, deixar offline. Isso foi no final de março. A princípio era para ser só duas ou três semanas. Ficamos desativados até meio de julho, não nos sentíamos bem para voltar, tava tudo muito instável,muito confuso. Mas em julho, com as coisas já funcionando, os lugares abertos, achamos que deu. Recuperamos a saúde mental para conseguir voltar.
E de julho para cá o que vocês estão fazendo?
A gente voltou com a programação da cidade porque tem muita coisa acontecendo. A sensação é que na cultura está rolando vida normal. A gente tem a vantagem dos museus sempre terem tido protocolos mais rígidos, então é uma coisa que, dentro das atividades possíveis, nos sentimos seguros de indicar para as pessoas. Um restaurante, não sei, não consigo ainda, acho que precisa de muitos cuidados. Então por enquanto vamos manter na cultura. O setor cultural foi muito afetado, tá todo mundo quebrado.
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A proposta do Paulicéia sempre foi criar um híbrido de conteúdo gratuito com conteúdo pago (tanto que ofereço planos de assinatura desde o lançamento) e, após alguns meses de experimentações de formato, chegou a hora de fazer essa transição.
Será assim: as entrevistas de segunda, com os retratos do Ale Ruaro, seguirão gratuitas; os conteúdos enviados às quartas (sempre um aprofundamento do assunto de segunda) e às sextas (dicas de roteiro cultural em São Paulo) serão enviados apenas para quem apoia em alguma modalidade paga: mensal, anual e membro fundador, com um valor inicial de R$15.
Também ofereço planos gratuitos para jovens que estudem ou trabalhem na área da cultura na cidade e podem de alguma forma se beneficiar do conteúdo das newsletters – se for o seu caso, me manda um email!
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