[Paulicéia 017] Josélia Aguiar: "nós renovamos a ação cultural da biblioteca"
Para a diretora da Biblioteca Mário de Andrade, é preciso atualizar o acervo com pensamento decolonial
TL;DR 👉 Josélia Aguiar, diretora da Biblioteca Mário de Andrade, conta como tem sido a gestão da mais importante biblioteca pública de São Paulo durante a pandemia. Digitalização e renovação do acervo são os maiores desafios. Eventos presenciais devem retornar em outubro, mas eventos online atraem público de todo o país e continuarão acontecendo.
Josélia Aguiar teve uma carreira extensa até chegar ao cargo importante que ocupa hoje: foi repórter e crítica literária, com passagens pela Folha de São Paulo e Valor Econômico, e foi curadora da Flip e do Centro Cultural São Paulo. Como escritora, é a premiada biógrafa de Jorge Amado e, em breve, também da pintora Djanira. À frente da Biblioteca Mário de Andrade, a maior de São Paulo e uma das mais importantes do país, Josélia faz valer essa experiência com conquistas e planos para a instituição, que vem atualizando sua programação e acervo em tempos de pandemia – assunto da entrevista de hoje.
Gaía - Como foi sua chegada à diretoria da Mário de Andrade?
Joselia Aguiar - Foi em 2019. Primeiro, a Érika Palomino (jornalista e ex-curadora do CCSP) me convidou para fazer a curadoria de literatura do Centro Cultural São Paulo, que pertence à mesma Secretaria Municipal de Cultura. Eu fui, porque achava legal a ideia de trabalhar com a Érika e não achava que no CCSP eu seria tão exigida como fui na Flip. Quando eu estava há duas semanas no CCSP, começando a entender como seria o trabalho, o Alê Youssef (Secretário Municipal de Cultura)1 me chamou. Lembro de pegar um táxi e no caminho já ir pensando que iria negar, que mudar de cargo não estava nos meus planos. Mas conversamos e falei que ia aceitar. Não pensei que seria mais simples, a Mário tem questões muito complexas.
“Como você atualiza o acervo de uma biblioteca que passou todo século XX sendo montada a partir de um pensamento europeu, ocidental, nesse momento que a gente está repensando a questão decolonial?”
Por exemplo?
Existe um novo pensamento que a gente precisa ter, por exemplo, em torno da renovação do acervo. É o mesmo problema da Flip, só que a Flip é muito mais simples. É uma coisa você renovar uma programação, mas como você atualiza o acervo de uma biblioteca que passou todo século XX sendo montada a partir de um pensamento europeu, ocidental, nesse momento que a gente está repensando a questão decolonial? Como atualizar esse acervo com pensamento decolonial? Se essa fosse uma instituição privada, isso seria simples de resolver, há recursos para você atualizar. Mas no poder público os trâmites são mais lentos.
Você já tinha experiência com o poder público?
Antes de mudar para São Paulo, vinte anos atrás, eu trabalhei em Salvador como responsável pela comunicação do Museu de Arte Moderna da Bahia. Eu trabalhava falando com os artistas e os curadores, fazendo textos, lidando com a imprensa. Eu não tinha essa experiência com o timing das coisas. Precisa ter paciência para as coisas acontecerem, é um pouco mais lento. Não dá pra ter ansiedade. Tem coisas que estamos resolvendo em 2021 que começaram a ser desenhadas e estruturadas em 2019.
Muitas das coisas que vocês desenharam em 2019 foram interrompidas por causa da pandemia?
A pandemia nos trouxe novos problemas pra resolver. Por exemplo: o que fazer com a biblioteca parada? Como os servidores trabalham com a biblioteca parada? Que tipo de trabalho eles podem fazer? Qual a solução pra isso? As pessoas da área técnica poderiam continuar trabalhando na área técnica, sem atender o público. Mas e os que trabalham com o público? Vão ficar parados? Como a gente organiza o trabalho? Ficamos parados uns sete meses e fizemos uma força-tarefa especial, as equipes que faziam atendimento ao público passaram por um treinamento e começaram a fazer catalogação de livros, com supervisão da equipe que já faz esse trabalho. Foi uma solução. Fizemos um edital de compra de livros, dentro do princípio da diversidade, e aí todas as equipes tiveram que fazer pesquisa para escolher os livros deste edital. Isso foi o começo dessa questão que estava contando, de atualizar o acervo, que começa comprando livros para a seção circulante, onde a biblioteca empresta livros. Só que são três milhões de itens, muitas coleções distintas. Esse acervo é muito grande, não é um edital rapidinho que a gente faz ali e resolve. É um processo de anos.
“Nós renovamos a ação cultural da biblioteca, que é a parte de fazer eventos com os autores, o teatro, essa parte já tem o olhar da diversidade. Então agora falta atualizar o acervo.”
Como está agora o processo de atualização do acervo?
Nesse momento estamos criando alguns marcos legais de política de desenvolvimento de acervo. É necessário criar legalmente uma comissão interna para aprovar as compras, para que isso não dependa de uma pessoa só. Vamos ter uma comissão interna instituída para que as compras aconteçam com regularidade e com debate, para que tenha mais legitimidade, no sentido de compartilhar mais olhares. Com esses dois marcos legais, teremos uma dinâmica interna já determinada de reuniões frequentes e de metas de compras também. Desde que eu entrei teve alguma compra, mas os bibliotecários contam que já teve períodos de gestões que isso não acontece. Imagina ficar quatro ou cinco anos sem comprar livros. Às vezes eu pergunto, temos esse? Temos aquele? Não temos. A gente renovou a ação cultural da biblioteca, que é a parte de fazer eventos com os autores, o teatro, essa parte já tem o olhar da diversidade. Então agora falta atualizar o acervo.
Como a biblioteca conseguiu fazer uma boa transição para o digital?
Nós conseguimos manter uma agenda de ações online toda segunda, quarta e sexta. Tivemos muitas visualizações, foi muito bacana. Quando a gente faz evento aqui na biblioteca o máximo que conseguimos de público é 200 pessoas. No online temos eventos com 25 mil pessoas. Isso está colocando uma outra questão, agora que estamos voltando com o presencial, que é não perdermos o online. Vamos continuar com algumas conversas com escritores, algumas coisas de teatro online, porque entendemos que o público interessado não está apenas em São Paulo. A gente vê pelos nossos dados, tem gente do país todo, de fora do Brasil também. Isso nos levou a descobrir que podemos fazer coisas interessantes no online, que temos público.
“Em torno de 10 a 20% dos nossos livros raros estão digitalizados. O ideal é digitalizar tudo.”
Em entrevista no começo de 20202, logo antes da pandemia, você falava sobre a questão da digitalização do acervo. Como está isso?
São várias frentes. O que a gente vai começar agora, ainda em agosto, e que estamos tentando desde 2019, é iniciar a catalogação de um acervo de fichas catalográficas que ainda não estão online. A biblioteca tem uma grande parte do acervo na torre3. Os livros estão na torre e os catálogos estão em fichas de papel, dentro de arquivos de aço. São mais de 300 mil livros. Fizemos uma licitação, uma empresa foi vencedora, e vamos conseguir que essas fichas se tornem um catálogo online. Isso significa que para pesquisar livros o público não precisará vir até aqui. Vai poder pesquisar de onde estiver. Então isso vai ajudar a fazer com que todo mundo saiba o que tem na Biblioteca Mário de Andrade, sem precisar vir até ela. Além disso, estamos tentando ser contemplados num edital do PROAC com um projeto de digitalização do acervo de fitas k7 e VHS do arquivo histórico da Hemeroteca. Todos os eventos que já aconteceram na Mário tem registro, estão lá. Também estamos desenhando projetos envolvendo livros e jornais raros e a hemeroteca. Em torno de 10 a 20% dos nossos livros raros estão digitalizados. O ideal é que sejam todos digitalizados.
Como está funcionando a abertura da biblioteca para o público?
Ela está aberta desde outubro do ano passado, com reserva de horário. A pesquisa dos acervos de guarda, dos livros raros e a hemeroteca sempre foi com horário marcado. A circulante, em que as pessoas entram para pegar livro emprestado e sair, também está funcionando com horário marcado. Marcamos uma pessoa a cada dez, quinze minutos. Foi uma coisa que combinamos desde o começo. A pessoa agenda, diz qual é o livro, e ele fica separado. Depois o livro é devolvido e fica em quarentena. Isso é o protocolo das bibliotecas. As pessoas têm vindo, não como antes. Tá todo mundo louco para voltar ao funcionamento normal.
“O Festival Mário de Andrade não aconteceu em 2020 porque ele é uma feira de livros, fica na rua. Não tem como transferir pro online.”
Considerando que ainda esse ano a cidade deve atingir uma porcentagem segura de pessoas vacinadas, qual o projeto da biblioteca para atrair o público de volta?
Estamos planejando voltar em outubro com cinema e teatro presencial. Temos um auditório onde toda quarta-feira tinha cinema e toda segunda-feira tinha teatro. Às vezes no final de semana também. E tem o Festival Mário de Andrade, que será presencial, pelo menos uma parte dele, em data a ser confirmada. O festival não pode ficar restrito somente à Mário, também acontece também na Praça das Artes, no Theatro Municipal4. Em breve, abriremos edital para chamar os expositores, porque a ideia é que tenha exposição das editoras, como foi no primeiro ano do evento, em 2019. Em 2020 não teve, justamente por isso: não é exatamente uma programação, o festival é a feira de livros, que fica na rua. Não tinha como transferir pro online.
Deve acontecer como em 2019, no primeiro final de semana de outubro?
Outubro é o mês do Dia Nacional do Livro. É o nascimento do Mário de Andrade também. E é uma data do calendário que foi pensada pra ele, porque tinham outras coisas acontecendo ao longo do ano. Por exemplo, a Jornada do Patrimônio acontece em agosto e a Virada Cultural, em maio. Então em 2019, outubro era o mês do festival Mário de Andrade. E é fato que ele vai acontecer. A não ser que exista uma mudança de quadro e a variante delta5 nos faça fechar de novo.
Já existe programação da biblioteca para o Centenário da Semana de 22?
A biblioteca faz parte da comissão especial da Secretaria6, então nós participamos das reuniões para o lançamento oficial, que aconteceu agora. Estamos esperando começarem a acontecer algumas coisas da própria Secretaria para então dar a nossa largada. Dentro da nossa programação teremos ciclos de conversas, exposições, teatro e cinema, tudo em torno da Semana de 22. Vamos digitalizar capas e imagens internas de todos os livros que temos relacionados à Semana de 22, livros raros, livros de arte. Já estamos fazendo isso para criarmos as ações de divulgação. Não temos nada anunciado ainda, mas faremos bastante coisa durante o ano de 2022 inteiro.
Sobre a pandemia, você lembra o momento que caiu a ficha para você, de que teria que fechar tudo?
Lembro. Eu estava de férias e ia viajar para a Alemanha a convite de um evento. Eu ia viajar para a França, depois ia para Frankfurt e Berlim, ia participar de uma feira. O avião sairia em 13 de março. A partir de fevereiro começaram a cancelar voos, só que os organizadores dos eventos não me diziam nada. Faltavam três dias para a viagem e comecei a entrar em contato com as pessoas que estavam realizando os eventos, até que finalmente cancelaram. Me deu um alívio enorme, eu estava com medo de viajar, chegar lá e não conseguir voltar. Aí as coisas aqui no Brasil começaram a ser canceladas também. E chegou a data em que o prefeito mandou fechar tudo7. Foi uma frustração muito grande, essa sensação horrível de ter um monte de planos e ver tudo cancelado. E naquele momento parecia algo meio desproporcional, a gente não sabia direito como o vírus funcionava.
Qual foi a primeira atitude que vocês precisaram tomar na pandemia?
Fechar a biblioteca. Quando a gente falou que ia fechar todo mundo ficou sem entender. Como assim, fechar tudo? Eu lembro que eu falava pras pessoas de atendimento: a gente tem que fechar tudo. E eles perguntavam, mas e amanhã? E o plantão? Eu falava: fecha tudo, vai todo mundo pra casa. E ficaram muito chocadas. A gente logo começou um esquema de teletrabalho, eu e minha equipe mais próxima tínhamos muitas reuniões por dia. Por essa época foi tudo muito cansativo, lá por abril, maio , junho, julho. Outubro foi a hora de retomar. O plano de retomada foi desenhado pela Secretaria, ficamos esperando a decisão. Inicialmente seria agosto e depois setembro, então a gente sabia que ia voltar. Em outubro voltamos, nesse esquema que estamos até agora. Nós ainda fazemos muito home office, evitamos estar todos no prédio, tem um rodízio. O que a gente vai começar a fazer a partir do dia 23 de agosto é ampliar o horário de atendimento marcado. Hoje são seis horas, vai passar a ser nove.
Qual sua maior expectativa para 2022?
Eu quero que tudo isso que falei sobre o desenvolvimento de coleções aconteça e fique funcionando. Que a gente possa ter mais atualizações de acervo. Que a gente volte a ter os eventos aqui na biblioteca, que estavam acontecendo lindamente. Em 2019 a biblioteca estava bastante ativa, com exposições, teatro, cinema. E que a gente consiga emplacar esses processos de digitalização que temos em vista.
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Publicamos essa entrevista com Alê Youssef no Paulicéia em julho.
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