[Paulicéia 036] Rafael Vilela: "Estar em campo exige uma escuta muito profunda e cuidadosa"
O fotógrafo paulista, colaborador da National Geographic, conta como é registrar a luta dos povos indígenas
TL;DR 👉 Na edição de segunda, o fotojornalista Rafael Vilela falou sobre fotografar a pandemia em São Paulo, cobrindo assuntos como o trabalho dos coveiros na Vila Formosa e a luta das Presidentas de Paraisópolis. Na edição de hoje, Vilela conta mais sobre seu envolvimento com povos indígenas e a luta ambiental no Brasil. O assunto já apareceu aqui no Paulicéia em junho passado (e, sim, vamos voltar ao tema).
Os Puruborás perderam um dos últimos falantes da língua deles durante a pandemia, por conta do COVID1, e os Guaranis são exemplo de força, potência e resistência, mesmo com a menor Terra Indígena demarcada do Brasil2. É uma vida espiritual muito intensa dentro da cultura deles. Então fui documentar o ano novo Guarani, chamado Arapyaú, que é um processo de renovação, de união aos mestres espirituais num momento muito crítico. O conhecimento deles diz muito sobre o que está acontecendo e várias lideranças espirituais falaram que tinham sonhado com o que estava acontecendo, e é muito louco, é muito parecido com o que o Davi Kopenawa3 e o Ailton Krenak4 falam da queda do céu. Eles falam uma coisa que acho muito bonita que é: eles não estão no meio de São Paulo, a cidade que chegou até eles. Eles sempre estiveram ali. Mas é muito louco você pegar um transporte ali da Zona Oeste, andar vinte minutos e chegar numa aldeia Guarani, onde as crianças falam Guarani antes de falar português. É uma história muito poderosa. Eles são cortados pelas Rodovias dos Bandeirantes e pela Anhanguera, que em Guarani significa Caminho do Diabo. Foi o nome que deram para os colonizadores e até hoje todo mundo usa sem saber o que significa, mas eles são real e simbolicamente cortados por essas duas rodovias. Hoje temos uma parceria de médio prazo, eles têm uma mídia própria chamada Mídia Guarani Mbya, sempre que posso ajudo de alguma forma.
Eu já conhecia a luta indígena por conta do trabalho na Mídia Ninja ao longo de todos esses anos. Nós sempre tivemos um contato muito próximo com os povos indígenas, comecei a documentar a pauta em 2012 quando eu fui cobrir os Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul. Fui passar uns quinze dias no ápice e documentar um pouco a história deles. Foi ali que comecei o processo de documentação da questão indígena no Brasil, em um envolvimento muito próximo. Trabalhei na campanha da Sônia Guajajara à Presidência da República, estive na coordenação visual da campanha. Mas só fui conhecer mesmo os Guarani na ocupação que eles fizeram contra a Tenda Construtora, que quer erguer uma série de empreendimentos imobiliários5 ao lado do território deles. É um território sagrado, é onde eles cresceram, tem rios, tem lagoas, eles têm uma relação muito profunda com aquela área e não foram consultados. Então essa obra afronta diretrizes internacionais de respeito aos povos indígenas e comunidades tradicionais. Imagina, um prédio com milhares pessoas, com esgoto, com carros, isso vai afetar totalmente o entorno.
Aí fui cobrir essa ocupação. Eles ficaram 40 dias ocupando o terreno da construtora Tenda, e eu me conectei muito com a questão específica do território indígena do Jaraguá, suas aldeias. Veio a pandemia e a ocupação acabou. Voltei para lá no meio do ano passado, fiz uma reportagem para a National Geographic, para mim foi o início de um processo. Sigo acompanhando, estive com eles agora quando fecharam a Rodovia dos Bandeirantes, ocuparam o Pico do Jaraguá6, tenho acompanhado a movimentação e o dia a dia.
Eu sinto que eles são bem abertos. Antes da pandemia, parte da economia da aldeia rodava com eventos e venda de artesanato, eles tinham um centrinho para receber visitantes, mas acho que são pouco visualizados. Existe uma distância do meio urbano, da ideia que as pessoas da cidade têm do que aquilo significa. Existe uma falta de compreensão. Porque, realmente, tem uma coisa determinante que é o tempo. O tempo de conexão, o tempo de conversa, o tempo de escuta. Para os indígenas ele é outro. E para construir uma relação de confiança, o tempo é fundamental. A empatia de estar em campo com essas populações vulnerabilizadas exige uma escuta muito profunda e cuidadosa antes de qualquer coisa. Eu já tive histórias de trabalhar com populações indígenas a partir da Sônia Guajajara e todo esse processo, mas acho incrível ver como é uma cultura muito rica, aberta e leve, muito feliz. Eu sou muito admirador do pensamento deles e ainda sou completamente iniciante, sou um homem branco de classe média que está ali em um papel de documentar e, de alguma maneira, projetar a força daquilo que já existe. É um aprendizado muito bonito, de escutar, de entender. É inacreditável que eles estejam tão próximos e que a gente seja completamente cego para sua existência. É uma questão completamente estrutural. Tenho acompanhado a pensadora indígena Geni Nunes7, ela narra os documentos jesuíticos de catequização, do início da chegada dos colonizadores, que são uma violência assumida, de acabar com um modo de vida. E hoje isso é feito a partir da questão estrutural, da perda do território, os Guarani hoje têm a menor terra demarcada do Brasil, e o Marco Temporal está ameaçando inclusive acabar com a terra que eles já tem. Quando não é por uma questão de território, é uma questão cultural, a negação da existência, falar que deixa de ser indígena porque usa celular. As crianças que estão lá, todas elas falam Guarani jogando Free Fire. Elas usam o áudio do Free Fire para falar em Guarani entre elas. São muito abertos a entender cultura sem perder as suas origens, a gente é que não se dispõe a abdicar de nada para entender o outro. cho que a desconfiança com certas coisas que essas populações têm é salutar, porque é um mecanismo de defesa.
Estar em campo com essas populações vulnerabilizadas exige uma escuta muito profunda e cuidadosa antes de qualquer coisa.
Esse tempo do jornalismo que a gente tem hoje é completamente limitado para entender várias questões do mundo. Isso é uma reflexão que faço porque passei muitos anos numa lógica de hard news em que o importante era a disputa de narrativas em tempo real nas redes. Isso é importante, sim. Mas, por exemplo, a primeira matéria sobre os Guarani que eu publiquei foi depois de passar sete meses indo lá. E isso hoje só é possível em poucos veículos. A National Geographic é um deles. Eu pude ficar sete meses apurando, indo até eles sem a ter obrigação de voltar com alguma coisa todo dia, e isso é uma realidade que já existiu em algum momento no jornalismo, mas hoje, nessa lógica do pastel de vento, ninguém quer saber o que você tá fazendo, só quer o link pra publicar logo. Tem a nossa dinâmica do nosso tempo também, como profissionais de imprensa, como esse tempo é colocado, como é fundamental iniciativas que permitam trabalhar o tempo com mais autonomia, onde o importante é a história. O jornalismo é um elemento de construção da história. Como algo será visto em vinte anos? A gente tem que pensar nisso, eu tento pensar nisso: qual é a possível interpretação de futuro? Qual é a densidade histórica disso? Tenho pensado muito o jornalismo a partir dessa perspectiva e acho muito legal, mas é um desafio gigante. Onde vejo que aponta um caminho diferente é fazer uma coisa que está mais próxima do documentarismo, inclusive. Infelizmente, o jornalismo se afastou muito disso.
Tenho dividido meu tempo em São Paulo entre a capital e o interior. Tenho me sentido muito mais produtivo no interior, com mais cabeça para pensar em projetos de longa duração. Mas, ao mesmo tempo, a cidade de São Paulo me chama muito. Fui uma das poucas pessoas a documentar o Borba Gato em chamas8. Fiquei sabendo, peguei o primeiro transporte para a capital e estava lá no primeiro horário. Era imperdível não documentar, foi uma coisa muito forte que diz respeito à questão indígena e a cidade. Pra mim, São Paulo é um dos lugares mais interessantes do Brasil, porque tem a história inteira, o passado, o presente, o futuro, o norte, nordeste, o sul, sudeste. Partes do mundo inteiro estão em São Paulo. Então a gente está num lugar que compõe com muita riqueza as narrativas visuais, acho muito foda. Por isso a cidade me chama. De tempos em tempos sou convocado a estar aí, mas ao mesmo tempo estou desiludido com a permanência a médio prazo. A não ser que se construam novas formas de vida na cidade.
Rafael Vilela indica cinco fotógrafos com um trabalho importante na cobertura do que está acontecendo no Brasil hoje:
Helen Salomão
Nay Jinknss
Luisa Dorr
Felipe Dana
Victor Moriyama
Uma seleção de coisas legais para fazer em São Paulo (só para assinantes).
Morte de anciãos por covid19 ameaça línguas indígenas do Brasil (National Geographic)
Davi Kopenawa: “não mexam mais com nossa terra mãe” (Instituto Socioambiental)
Entenda o protesto dos Guarani Mbya contra a construtora Tenda (Instituto Socioambiental)