[Paulicéia 009] Prato Firmeza Preto: gastronomia afro-brasileira em São Paulo
"A gastronomia afro-brasileira tem muita força e recorte específico de imigração."
TL;DR 👉 O guia Prato Firmeza Preto mapeia a comida afro-brasileira na cidade de São Paulo. A iniciativa é do laboratório de jornalismo independente Énois Conteúdo e foi realizada em 2020, durante a pandemia, com atenção para a questão dos entregadores. Além do guia, digital e impresso, a equipe criou um podcast para falar de temas como ancestralidade e direito à terra. Conheça cinco restaurantes do guia que fazem entregas.
Sempre acompanhei os cadernos de gastronomia dos jornais de São Paulo. Mas há muito tempo notei que eles tratam de um roteiro geográfico bastante restrito, com foco no Centro expandido e, mais ainda, na Zona Oeste: Jardins, Pinheiros, Higienópolis, Itaim. É pouco. E deixa no ar a pergunta: que comida há nos bairros, nas periferias?
É essa a pergunta que o Prato Firmeza responde. O projeto do laboratório de jornalismo independente Énois Conteúdo já publicou três guias gastronômicos cobrindo a gastronomia das quebradas de São Paulo.
Esse trabalho começou em 2018 e continuou durante a pandemia com a publicação do Prato Firmeza Preto, um guia da culinária afro-brasileira da cidade. Para dar conta desse corre, a equipe se uniu a outros coletivos de conteúdo afrocentrado, encontrando de lanchonetes a buffets, incluindo a questão das entregas.
Quem conversou comigo sobre o Prato Firmeza e a Énois foi a Gabriella Mesquita, jornalista, que integra a equipe desde 2018.
Gabriella Mesquita tem apenas 23 anos e um cargo com nome imponente: Analista de Distribuição Jornalística. Ela trabalha desde 2018 na Énois Conteúdo, laboratório de jornalismo fundado em 2009, e que nesses onze anos de vida já foi escola, agência e hoje foca em projetos de diversidade no jornalismo. Depois de atuar como produtora da websérie do Prato Firmeza com junto com a Tv Folha, hoje ela está à frente da comunicação e redes sociais do projeto, além de dirigir a análise de distribuição jornalística da Énois, realizando pesquisas para garantir que os projetos e conteúdos criados pelo laboratório cheguem até as pessoas definidas como público-alvo.
Gaía - Como você chegou até a Énois?
Gabriella - Eu sou nascida e criada na Cohab 2, no extremo leste de São Paulo, mas hoje moro na região central. Entrei na faculdade em 2016 como bolsista na faculdade Anhembi-Morumbi, e sempre fui uma jornalista frustradíssima com as metodologias que a universidade apresentava. Não me sentia representada ou contemplada em questões que julgava importantes.
Eu sou da quebrada, sou uma mulher indígena, minha família inteira veio do Maranhão. Então eu vivia com os meus amigos da quebrada, cada um procurando seus projetos. Foi uma questão de necessidade, sem algo com o que me envolver eu iria me sentir sempre nula no ambiente acadêmico.
Um dia, um amigo entrou no Instituto Criar, um projeto de ensino de audiovisual para a juventude. Ele que me falou da Énois. Eu me inscrevi e me tornei aluna. Foi uma coisa difícil de encontrar, é uma referência que surge de viver na quebrada e estar incomodada com as coisas. Foi uma coisa identitária mesmo: eu vi uma coisa sendo feita, falando sobre a minha identidade, e fui atrás.
Como é definido, dentro da metodologia do Prato Firmeza, que é periferia?
Essa é uma discussão interna que vem desde o começo das aulas de jornalismo, esse assunto já gerou muito conteúdo. Mas entendemos que a complexidade de São Paulo gera um entendimento diferente para essa demarcação do que, por exemplo, o Rio de Janeiro, em que é possível andar e delimitar o que é favela, o que é classe média e o que é área periférica. Aqui em São Paulo é muito denso, muito distante, então nós não temos a certeza dessa resposta. Essa é a questão. Tivemos uma grande colaboradora do Prato Firmeza, a Gisele Brito, que é especialista em urbanismo voltado para as periferias, uma pessoa que estuda o assunto em profundidade. Ela colaborou com o guia Prato Firmeza 2018, por conta da delicadeza desse tema. A periferia vem mais das pessoas que estão no projeto do guia do que de fato do mapeamento dos locais.
O mapeamento vem dos alunos do projeto. A maioria dos alunos são negros e de periferia, e isso trouxe a necessidade de falar sobre a territorialidade.
O Prato Firmeza é sobre as zonas norte, sul, leste e metropolitana e as periferias dessas regiões, que são lugares que a gente delimita como afastados, de difícil acesso de transporte público, onde existe um deserto alimentar. Os lugares indicados no Prato Firmeza surgem a partir do mapeamento afetivo das pessoas que fazem o guia. Assim: eu sou a Gabi, sou jornalista dessa escola, eu moro nessa quebrada e a minha vizinha faz uma coxinha maravilhosa, vamos apurar, vamos ver se ela se torna personagem do guia?
Como surgiu o Prato Firmeza Preto?
A gente trouxe o mapeamento afetivo para outra perspectiva, porque a maioria desses alunos eram negros e de periferia, e isso trouxe a necessidade de falar sobre a territorialidade das pessoas.
Pela primeira vez a gente fez um Prato Firmeza com estabelecimentos no centro da cidade, porque a gente entendeu que a resistência da gastronomia afro-brasileira também está no centro, com muita força e com um recorte específico de imigração.
Não tinha como ficar só na periferia por conta dessa camada, que veio do nosso processo metodológico de olhar para os profissionais que estavam ali fazendo o guia.
Em que situação o Prato Firmeza estava quando começou a pandemia, em março do ano passado?
Estava na terceira edição. Tínhamos acabado de experimentar um processo de distribuição jornalística na Feira Preta, presencial, com barraquinha. Chamamos alguns empreendedores do último guia, que era um Prato Firmeza voltado para encontros, lugares onde você vai comer com a galera, dar rolê, conhecer gente. A distribuição em parceria com a Feira Preta foi nosso último grande evento. Ali já estávamos começando a flertar com a ideia de um guia sobre negritude e identidade, mas quando a pandemia chegou a gente deu uma pausa, um respiro para olhar o que tínhamos até o momento. Quando começou o lockdown, eu fiquei responsável por refazer o mapeamento de todos os estabelecimentos do Prato Firmeza para saber quais estavam abertos, quais fecharam por conta do lockdown, e também se precisavam de alguma ajuda ou divulgação. Começamos algumas estratégias que, jornalisticamente, eram de apuração e mapeamento, mas também para continuar produzindo conteúdo e debates. A parceria com a Feira Preta trouxe a vontade de somar tudo isso, e decidimos criar um guia virtual sobre negritude e gastronomia afro-brasileira.
Com a apuração que eu tinha feito com os restaurantes foi possível diagnosticar várias coisas. Por exemplo: restaurantes da quebrada que estavam começando a fazer seus próprios aplicativos porque não queriam compactuar com Ifood, Rappi e afins. Isso em paralelo com o grande rolê que estava acontecendo sobre os direitos trabalhistas dos entregadores e o movimento dos Entregadores Antifascistas.
Quando começamos a selecionar a equipe do Prato Firmeza Preto, vimos uma demanda específica de entregas, porque não seria possível fazer a degustação de gastronomia presencialmente. Entendemos que era preciso falar sobre entregas.
Como o podcast se insere nisso?
O podcast foi uma das frentes de distribuição do Prato Firmeza Preto. O projeto foi inovador para quem trabalhava no Prato Firmeza porque trabalhamos junto de profissionais de outros coletivos: Vozes das Periferias, Periferia em Movimento, Preto Império, Alma Preta, Agência Mural e Feira Preta. No podcast, que tem cinco episódios, aprofundamos um pouco outros temas do Prato Firmeza Preto.
O guia é separado em editorias que interseccionam a identidade e a gastronomia afro-brasileira, e a gente queria adentrar essas temáticas no podcast, para falar de uma forma mais sensível.
Porque no áudio você escuta atenta a voz da pessoa que está contando sua própria história. Abordamos a ancestralidade, a soberania alimentar, o direito à terra, com os personagens do Prato Firmeza como especialistas. Também foi um experimento jornalístico, destrinchando o guia e trazendo outras pessoas. O podcast foi entregue junto com o guia e entrou na programação oficial da Feira Preta. Quem tocou o podcast, além do Guilherme Preto, coordenador do Prato Firmeza Preto, foi a Patty Durães, da Feira Preta. Foi uma grande parceria com distribuição no próprio festival, que pela primeira vez aconteceu de forma inteiramente digital em 2020.
Na edição de quarta-feira continuaremos falando com o Prato Firmeza sobre os próximos dois guias gastronômicos, o festival (online) que começa em agosto, a metodologia de trabalho e de onde vem os fundos que sustentam o projeto.
Cinco restaurantes e chefs listados no guia Prato Firmeza Preto que estão abertos e fazendo entregas:
Matulas da nega - Da Chef Suellen Maristela no Capão Redondo, tem opções veganas e vegenarianas. Encomendas de moquecas, sopas, tortas e bolos. Pedidos com dois dias de antecedência.
Preto Cozinha – Além de dar dicas de técnicas e ingredientesno Instagram, o chef Fred Serra cria e vende pratos a partir do seu apartamento no Bixiga, em São Paulo. Tem pratos da semana e pode encomendar direto na DM.
Akará Delivery - Entrega de cozinha baiana na Vila Brasilândia, zona norte de SP, com foco em acarajés, que podem vir em versões veganas (sem camarão).
Baobá Gastronomia - O Chef Gerônimo, de Sapopemba, prepara quentinhas com inspiração em diferentes partes do continente. Pedidos direto no Instagram até quinta-feira com entrega no domingo.
Biyou'Z Gastronomia Africana - Provável restaurante africano mais famoso da cidade, a casa da Chef Melanito serve pratos como o BICOYE, com quiabo, tomate, cebola, galinha e fufu de arroz. Dois endereços e sistema de delivery nos principais apps.
Thread da semana
"Thread" é o nome que o Substack dá para a boa e velha troca de mensagem em caixas de comentários (não precisa estar cadastrado para participar). Começamos há pouco, mas a comunidade Paulicéia já dá pitacos:
- Rumo à décima edição: o que virá depois?
- Que lugar de São Paulo você quer visitar quando a pandemia acabar?
Essa semana o tema é comida afro-brasileira. Você já parou para pensar que temos mais de 50% de população negra e parda na cidade mas uma vasta maioria de restaurantes de inspiração européia?
Quais restaurantes afro-brasileiros São Paulo você conhece em São Paulo? E, se não conhece, por quê?