[Paulicéia 046] Emanoel Araújo: "A questão do Museu Afro Brasil é ideológica"
O curador do Museu Afro Brasil fala sobre a importância do acervo como retrato da história do Brasil real
TL;DR 👉 Na entrevista de segunda-feira, o artista plástico, curador e intelectual baiano Emanoel Araújo falou sobre sua carreira como museólogo à frente da restauração da Pinacoteca do Estado e da criação do Museu Afro Brasil. No papo de hoje, para apoiadores do Paulicéia, Emanoel fala sobre a importância do museu como espaço de memória da real história do país.
Em entrevista ao Paulicéia na semana passada, o curador da exposição fotográfica “Terra em Transe"1, Diógenes Moura, disse que "o Museu Afro é o melhor e mais importante museu do Brasil". Emanoel Araújo, é claro, concorda. "Esse é um museu de história, de arte e de memória. É um museu que fala da cultura brasileira, que toca na questão da autoestima e da exclusão social. É um museu que levanta para defender a negrada que está aqui. A nossa negrada, minha e de todos os negros do Brasil. Essa questão é ideológica. O Museu Afro Brasil tem a ideologia de ser uma instituição que guarda essa memória, por isso é muito visitado por estrangeiros: é um museu de reflexão. Não é um museu de contemplação, aqui não tem Picasso, Rodin, Renoir, nada disso. Isso é o MASP, que às vezes quer ser o Museu Afro Brasil".
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Emanoel, que em 2018 participou da exposição Histórias Afro-Atlânticas no MASP2, não considera importante que o museu faça um exercício de ser menos eurocentrado. "O MASP tem que fazer o que a tipologia dele exige. O MASP é um museu de arte ocidental, um museu clássico. A Pinacoteca é um museu do final do século 19 do Brasil. O MAC é um museu de arte moderna, um museu modernista a partir da coleção do Matarazzo. O Museu de Arte Moderna ninguém sabe o que é. Deveria ser um museu de arte contemporânea. Então, quando o MASP assume ser negro também, eu acho que a gente precisa mudar para lá e não esperar que ele venha buscar aqui seus projetos.
O MASP está na Avenida Paulista, é um museu da elite brasileira, da oligarquia brasileira.
E, além disso, é um museu com todas as qualidades que todo museu gostaria de ter. Quando eu estava na Pinacoteca, minha ideia era fazer com que a Pinacoteca fosse o MASP. E consegui." O sucesso de público da gestão da Pinacoteca ainda não foi repetido no Museu Afro Brasil (em 2019 recebeu 164 mil pessoas3, contra 420 mil da Pina4 e 700 mil do MASP5).
Para Emanoel, a localização é um complicador: "É uma desqualidade estar no Parque do Ibirapuera. As pessoas que vêm pro parque não vêm pro museu. E é difícil o acesso. A gente até hoje não conseguiu ter um estacionamento, como (o prédio da Fundação) Bienal ou como o Museu de Arte Moderna tem. Uma pessoa de certa idade, ou com dificuldade de locomoção, precisa parar no Portão Três e vir andando." A situação é piorada pela Marquise do Ibirapuera, que serve como ligação entre os pavilhões, atualmente em reforma, após dois anos de interdição.
Mas o diretor do espaço também sabe que criar público é um trabalho longo: "Quando eu entrei na Pinacoteca, em 1992, ela já tinha 90 anos e recebia umas cem pessoas por ano. Ninguém conhecia a Pinacoteca, as pessoas passavam pelo prédio e se benziam. Quando a exposição do Rodin teve aquelas filas, as pessoas pensavam que era fila da sopa. Então levou mais de 90 anos para a Pinacoteca ser o que é hoje.
Eu espero que alguém um dia chegue ao Museu Afro Brasil e consiga trazer o público que ele deve ter. Porque esse museu é importante."
Para Emanoel, a vantagem de ter o Museu Afro Brasil no Pavilhão Manoel da Nóbrega é o contexto histórico: o prédio foi erguido em comemoração ao Quarto Centenário de São Paulo, em 19546, quando foi palco da segunda Bienal Internacional de São Paulo – que teve a “Guernica” de Picasso. "Esse prédio tem uma memória importante, tem significado. Só de ter abrigado a ‘Guernica'7 ele deveria ser tombado, porque é essa é a obra de arte mais importante do século 20." Após ter sido ocupado pela Pinacoteca durante a reforma, o pavilhão foi considerado para sediar um museu da imigração (que hoje funciona na Hospedaria do Imigrante, no Brás) e então ficou vazio, voltando a ser ocupado de novo por Emanoel quando Marta Suplicy criou o Museu Afro Brasil, em 2004.
É essa questão histórica, de memória, que torna impossível, para Emanoel, apontar uma ou outra obra como "imperdível". "Quando o (ex-ministro e professor de economia) João Sayad8 me pediu para dizer quais as obras importantes do Museu Afro Brasil, eu respondi assim: olha, pode ser uma mandala, que recebi de um colecionador, que é alguém pedindo às almas do purgatório para devolver o escravo que ele tinha. O museu se baseia num acervo de memória, um acervo que conta uma história real brasileira. Os outros são museus de fantasia. Esse não, esse é um museu de realidade. Sendo assim, tudo que está aqui tem importância. Uma imagem do Pão de Açúcar, essa mandala, um vestido de casamento da primeira modelo negra, os pintores negros da academia, Aleijadinho. A gente tem aqui fotografias de todo mundo que foi importante: o almirante João Cândido9, a biblioteca Carolina Maria de Jesus10, o teatro Ruth de Souza11. Tem essa memória desde o governador de Pernambuco que expulsou os holandeses, Henrique Dias, e passa pelo movimento revolucionário do Brasil, as revoluções da Chibata, dos Malês, de 1932. Eu já vi pessoas importantes saírem chorando, porque aqui tem uma raiz que é profunda.”
“O museu toca na autoestima, porque aqu chega uma criança que sofre bullying na escola por ser preto e vai ver Teodoro Sampaio, um grande engenheiro, vai ver os Irmãos Rebouças, também grandes engenheiros e nome de rua em São Paulo, vai ver Cruz e Souza, o grande poeta negro brasileiro, vai ver Carlos Gomes, o grande compositor brasileiro que todo mundo não fala. Toda essa gente é afro-brasileira.
Essa documentação histórica promovida por Emanoel também é atual: "Terra em Transe", a monumental mostra de fotografias criada por Diógenes Moura, é um retrato do Brasil de hoje. "Terra em Transe é reveladora do nosso momento histórico zorque faz um mergulho na história do Brasil, que é uma história múltipla, de sofrimento, de ditaduras, de escravidão, de pessoas isoladas, de preconceito.
“Essa exposição é um retrato muito vivo, ferido e sangrento desse Brasil que é perverso mesmo, a gente sabe que é perverso.
A gente vê todo dia na televisão as pessoas catando comida no lixo, brigando por ossos. É uma cenografia única no mundo, eu acho. Eu não vi na China e na Índia ninguém catando lixo para comer, e lá tem bilhões de pessoas. Mas você vê no Brasil, pessoas sendo mortas por causa de um celular. É assustador esse momento sombrio do Brasil, que eu acho que essa exposição revela. Ou melhor, ela relembra que o Brasil é isso que a gente tem aí.”
Você pode conhecer o acervo do Museu Afro Brasil pelo Google Arts & Culture. Mas se você está em São Paulo, eu recomendo demais que vá visitar pessoalmente.
Ouça o podcast com a história da Segunda Bienal Internacional de São Paulo, que Emanoel considera "a Bienal mais importante da história do Brasil" e que aconteceu no Pavilhão Manoel da Nóbrega, ocupado hoje pelo Museu Afro Brasil.
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