[Paulicéia 063] Thiago Pethit: "Temos que encarar que o mundo mudou"
Músico e ator paulistano faz análise do momento da cultura independente, dois anos após o início da pandemia.
Quando a pandemia começou, em março de 2020, Thiago Pethit estava para começar a turnê de divulgação de seu último disco, "Mal dos Trópicos", lançado em 2019. Como todo mundo que trabalha com público, naquele momento ele viu seus compromissos profissionais serem cancelados, incluindo shows em outras cidades. Mas ao contrário de muitos artistas, Thiago não entrou no hype das lives e tampouco tem se dedicado a fazer shows. Dois anos após o início oficial da pandemia, o ator e músico, um dos mais talentosos de sua geração, gosta de dar aulas de canto e de estudar música erudita no piano, duas atividades que ganharam importância na sua vida desde o surgimento da Covid-19. Na conversa abaixo, Pethit fala sobre desunião da classe artística, escolhas que fomos obrigados a fazer durante a pandemia e explica por que não gosta da palavra "retomada" para falar do atual momento em São Paulo.
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Aulas de canto
"Eu já fazia. Antes da pandemia, eu tinha alguns alunos, era bem suave. Não era um modelo de vida ser professor de canto, mas gosto de dar aula, atualmente me sinto mais confortável dizendo que sou músico e professor de canto, porque isso ganhou importância na minha vida. Agora tenho 17 alunos e passar do presencial para o virtual foi bem estranho. No começo foi quase insuportável, porque o tesão de dar aula foi embora. O online exige certas atenções que eu não tinha, não estava treinado. Por exemplo: eu preciso ouvir como você faz o som de S. E cada plataforma, Zoom, Skype etc. coloca um efeito de som diferente. Então eu não sabia se eu não estava ouvindo porque a pessoa fazia mal ou se eu precisava mudar a plataforma, se está mais agudo médio por causa da internet, se é minha conexão. Tecnicamente foi muito difícil. Mas com o tempo foi ficando mais fácil e tão específico que agora eu já sei: bom, fulano tem uma internet tal e eu uso plataforma tal, então o som vai ser esse. Já sei o que preciso ouvir para saber se o exercício está funcionando ou não. Hoje eu gosto da ideia de ter aulas online, gosto sobretudo de ter alunos que não são de São Paulo. Acho super interessante manter esse diálogo, porque possibilita muitas coisas. Por exemplo, eu tô fazendo a preparação vocal de um compositor do Rio, que jamais me procuraria se não fosse pelo online. É um trabalho super legal, que estou adorando fazer e que o online permite."
Morar no Centro
"Sou paulistano crescido e criado. Minha mãe e meu pai são do interior do Paraná e vieram pra cá. Sou de Perdizes, e moro no Centro há sete anos. O Centro piorou muito. Sinto que a quantidade de pessoas em situação de rua triplicou de tamanho1. Eu morava no cruzamento da Alameda Barros com a Martim Francisco, que é super barulhento, o que inclusive foi um pouco o fator que me fez me apaixonar pelo Centro: tinha uma coisa de uma vida constante, muito barulho, muita gente passando, carro, ônibus, muito doido de rua, era exatamente um lugar perigoso, tinha essa frequência noturna de pessoas gritando, bem particular, bem pitoresco. Quando me mudei para o apartamento em que estou hoje, há uns dois anos e meio, cheguei aqui e essa era uma rua super tranquila, não se ouvia muito barulho, essa frequência da noite não existia. E atualmente é um caos. A quantidade de pessoas pedindo dinheiro, pedindo comida. Uma coisa triste desse momento é que os aluguéis do Centro estão cada vez mais caros, a situação em que se vive vai ficando precária em relação ao que você paga de aluguel e, para mim, sem as vantagens de morar no Centro. Na pandemia, viver no Centro foi ficando uma coisa que não faz sentido. Bom, estou dentro de casa, essa casa poderia ser em qualquer lugar, né? Poderia ser no interior, tanto faz onde eu moro! Eu sou uma pessoa reclusa, tenho uma tendência natural de ficar isolado, tenho pouquíssimos amigos, poucas pessoas frequentam minha casa, não costumo sair. Não acho que isso seja um problema, é minha natureza.
“Na pandemia ficou claro pra mim a segurança, o conforto que me dá estar no Centro de São Paulo. Se eu olho pra rua, tem pessoas. Eu não estou absolutamente isolado. Se eu der um grito alguém me escuta.”
Desunião da classe artística
"Isso vem de muito tempo, a pandemia só deixou escancarado. A classe musical é muito competitiva, é como o mercado acabou moldando o meio musical. Diferente do teatro, que é como se você fizesse um pacto: se eu faço teatro, eu não vou ganhar dinheiro, o sucesso não é algo que vai me acontecer por um acidente corriqueiro, então a competição não é tão acirrada.
“O meio musical é um meio com muitas possibilidades, mas elas são cada vez mais precárias.”
“Nesse momento de redes sociais, que a gente se vende o tempo todo, eu sinto que todos nós temos meio que um contrato com a narrativa de sucesso. Eu não posso entrar no meu Instagram e dizer: gente, tá foda viver sem show. Eu tenho que entrar e dizer: eu sou um sucesso, eu tenho muitos ouvintes. Porque senão o contratante, o público, vai desconfiar que eu tô na pior e não vai me chamar, porque ninguém chama quem tá na pior. Acho que essa narrativa de sucesso vale pra todas as profissões, mas acabou deixando os músicos reféns, foram os que mais sofreram, e a classe artística, a que mais sofreu com as paralisações. Porque é uma classe que não trabalhou. Mesmo quem fez lives, foram poucas. Quando pede ajuda pra classe musical ninguém quer se comprometer porque estão todos com medo de serem vistos como fracasso. Quando eu comento no Twitter, ‘gente, tá difícil, o que a gente vai fazer, não tem show’, quase nenhum músico se manifesta. Porque ninguém quer se comprometer a dar um like naquela publicação."
Retomada
“Retomar de onde eu parei, de março do outro ano, isso não existe. Porque não é que o tempo pausou e agora a gente aperta o play e ele segue. Gente, passaram dois anos, estamos entrando no terceiro, minha vida não é como era. Isso é uma coisa que bateu muito forte pra mim. Fiz muitos trabalhos nesse momento de retomada, gravei uma música para um projeto, tentei fechar shows, mas as situações são todas diferentes. Por exemplo, fui convidado para fazer um show no Studio SP, que me convidou para participar da reabertura em janeiro, e uma das primeiras coisas que eu perguntei foi: como é? A casa tá reabrindo com um patrocínio, com um apoio, como vai funcionar? É bilheteria, não é? Porque, afinal, não é que eu preciso de palco para viver, eu preciso do dinheiro do meu trabalho para viver. E essa minha pergunta caiu super mal para eles. O que eles queriam saber era: você tá a fim de tocar ou não tá? É bilheteria, mas você tá a fim ou não, depois a gente conversa disso. E eu não respondi mais. Por que eu tô dizendo isso? Porque tem um fator que é assim: eu não circulo um show há dois anos e meio, ou seja, meu show não tá montado. Eu vou ter que montar um show, e isso significa contratar músicos, pagar equipe, fechar as salas de ensaio que vão me custar dinheiro. Existe um investimento para essa retomada. Os shows seriam agora em janeiro e em janeiro muita coisa fechou de novo, ou seja, eu teria que cancelar o meu show e retomar ensaios para uma próxima retomada. Então a situação não é mais a mesma, não estamos retomando de março de 2020, coisas aconteceram, as pessoas se transformaram, meu baterista nem mora mais em São Paulo. Tem esse lugar que eu sinto que ninguém quer conversar muito sobre. Fica nisso de ‘vamos retomar, gente, olhar pra frente, pensar positivo!’ Ninguém está querendo assumir o buraco em que estamos e como a gente reconstrói daqui. Para mim não é uma retomada, é uma reconstrução. A palavra deveria ser essa. Passamos por uma guerra de infecção, uma situação completamente atípica, pessoas perderam o emprego, pessoas morreram, muita coisa mudou. Eu cheguei a fazer um show em novembro do ano passado, bem quando começou a reabertura, e foi um show ótimo, para a Gucci, super especial. Foi uma delícia ter retomado desse jeito. Mas sinto isso: muitas coisas precisam ser reconstruídas.”
Olhar para o que deu errado
"Acho curioso, bem brasileiro, uma pena que a gente esteja novamente, culturalmente, lidando com isso da mesma maneira, que o Brasil não gosta de olhar para o luto. Falo disso desde o ‘Mal dos Trópicos’, que pode ser lido como um disco sentimental e apaixonado, sobre o fim de um amor, mas é um disco também sobre um Brasil pós-golpe de 64, um Brasil que teve direitos usurpados. A gente não gosta de olhar pro que deu errado, pro luto. A gente não quer rever a ditadura, ninguém quer resolver o que vai acontecer com esses milicos que fizeram a ditadura, olhar para o que é muito triste, muito pesado.”
“A gente faz assim: vamos olhar pra frente, agora funcionou, fez sol, esquece o que aconteceu ontem! É um pouco como sinto que a gente tá lidando com a pandemia também: agora reabriu, vamos lá!”
“Sempre me vem assim: imagina a Alemanha nos anos 1930, não dava pra fazer nada, quem podia, fugia. Essa ideia de estar vivendo uma guerra foi uma coisa que em algum lugar me apaziguou certos desejos — tá tudo bem, outras pessoas passaram por situações assim, artistas sobreviveram a isso. E, pensando, a Alemanha é um país que olhou pro inferno que viveu e o julgou. Que conseguiu se reconstruir a partir desse julgamento, de olhar o que fez de errado pra nunca mais repetir. Eu sinto que a gente tem uma dificuldade muito grande de olhar para o que fez de errado, não se revê, não se quer lembrar.”
“O Brasil tem uma coisa muito curiosa, e é essa coisa do samba e Carnaval, né? Eu acho Carnaval um evento triste por oposição. Ele é festivo, mas tem um fundo de tristeza, que vem daquela beleza de quando você vê a pessoa na avenida e ela se fodeu o ano inteiro, ela mal paga as contas, tem uma família pra sustentar e tá ali vivendo aquele momento grandioso. É o festejo possível, essa é a beleza.”
“E é uma coisa bem brasileira mesmo: saiu o sol, é o festejo possível! É um povo tão sofrido que o festejo possível precisa ser celebrado. É o belo de ser brasileiro.”
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muito bom. que fala mais necessária... por mais pessoas lúcidas nesse mundo!
Muito daora. eu nunca pude imaginar que ele também atua como professor de canto. Fantástico. Digo mais, achei muito adora como ele se adaptou a realidade de cada aluno durante a pandemia para continuar a ministrar aulas. Sobre a desunião da classe artística que ele mencionou, também achei um ponto legal. Eu acredito que não existe apenas na música, mas acredito que a música é o exemplo mais vitrine pra essa característica social do trabalho. Arrasou demais!